Comissão da Anistia julgou 23 processos movidos por filhos e familiares
por Caros Amigos
Dificuldades em adaptação, prejuízos escolares e com a língua, falta de integração ao voltar para o Brasil e até acusação de terrorismo foram alguns dos relatos ouvidos na última sessão de julgamento da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Durante a quinta-feira (2), foram julgados 23 processos de filhos e familiares de perseguidos durante a ditadura. À época, quase todos eram crianças e foram forçados a viver no exílio com seus familiares. Todos os processos foram deferidos.
Ivan Mastrangelo Dias estava ainda na barriga da mãe quando ela fugiu do Brasil para o Uruguai. O pai era pastor da igreja presbiteriana e deixou o Brasil por motivos de perseguição. Depois, a família mudou-se para a Alemanha, onde Ivan foi alfabetizado. Ao chegar no Brasil, em 1979, passou dois meses calado, porque não se adaptava ao português. E foi estudar numa escola estrangeira, o que ainda prejudicou mais sua adaptação. A maior dificuldade foi quando, mais velho, quis casar, pois o Cartório Civil não reconhecia sua certidão de nascimento do Uruguai e a naturalidade brasileira.
Sem certidão
Após idas e vidas às autoridades competentes não recebeu uma resposta satisfatória para a condição de brasileiro. "Eu sou brasileiro nato porque meus pais são brasileiros, eu quero ter os mesmos direitos de um brasileiro, quero ter o brasão da República na minha certidão", disse emocionado.
Seu irmão Rodrigo chegou na Alemanha aos 3 anos de idade, cresceu falando duas línguas, mas conta que sofreu bulling ao retornar para o Brasil, porque por optar por uma escola alemã, tinha dificuldades com o português. “Eu fugia do Brasil, dentro do Brasil, eu nunca me senti filho deste solo, eu não tinha amigos de infância. Eu culpei meus pais pelo que tinha acontecido até entender que meus pais também eram vítimas, contou à Comissão.
Reconhecimento
Rodrigo, Ivan e a mãe Edda tiveram a condição de anistiados políticos reconhecida pela Comissão. Rodrigo e o irmão, cada um, vai receber por oito anos de perseguição 240 salários mínimos, respeitado o teto de R$ 100 mil. Ivan também terá o direito de registro de nacionalidade brasileira. Edda vai receber uma prestação continuada mensal de R$ 2.330,00 em razão de vínculo empregatício perdido e de efeitos retroativos R$ 204.845,83 mil.
Ernesto José de Carvalho, filho de Devanir José de Carvalho, nasceu em 1968. A mãe ficou presa no DOPS, em São Paulo, e sofreu torturas e o pai foi morto pela repressão quando ele tinha três anos. Dois tios haviam sido mortos também. Ernesto e o irmão Carlos Alberto foram exilados em 1971, após a morte do pai. Moraram no Chile, Argentina e Portugal e retornaram ao Brasil em 1978 por força de mandado de segurança impetrado pelo Comitê de Anistia Internacional de Portugal.
Memória para sempre
"Eu perdi meu pai, perdi dois tios, a minha família foi despedaçada. Meu avô morreu com 90 anos com ódio porque um delegado bateu na cara dele. Eu não quero ouvir as torturas que a minha mãe passou. Esses tabus vão ficar, essa história acaba aqui, mas a memória não vai ser apagada”. Pelos nove anos de perseguição política (de 1969-1978), Ernesto vai receber 270 salários mínimos, respeitado o teto de R$ 100 mil.
A família Rabelo, cujo pai era jornalista e trabalhava no jornal chamado Binômio, em Belo Horizonte (MG), viveu no Chile e na França e retornou ao Brasil em 1979. O pai, José Maria, ainda passou um período na Bolívia longe da família, depois que o jornal foi fechado pela ditadura, até à época do golpe que derrubou o presidente Victor Estenssoro que o fez partir para o Chile encontrar os demais membros da família. No Chile, ele a esposa e os sete filhos (Alvaro, Fernando, Ricardo, Hélio, Patrícia, Mônica e Pedro) viveram nove anos, mas quando todos já estavam adaptados à língua castelhana, houve o golpe do ditador Pinochet e tiveram de se mudar para a França para recomeçar tudo novamente, inclusive aprender uma nova língua e adaptar-se à uma nova cultura.
Apátrida
Ricardo, o caçula, contou que só aprendeu o hino do Brasil aos 16 anos, embora conhecesse o hino da França e até da Síria, porque no Chile estudou numa escola síria. "Esse sentimento de apátrida é muito ruim, nas férias não tinha casa de vó, vivíamos numa panelinha".
Hélio lembrou que quando ganharam um passaporte da ONU, foi um sofrimento, pois as autoridades sempre desconfiavam de alguma irregularidade. O passaporte era válido em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil. Seu desejo sempre foi voltar à pátria, mas quando voltou enfrentou desafios.
"Eu tinha um jeito diferente quando voltei, o cabelo grande e louro, o povo não pensava que eu era brasileiro, eu não entendia as piadas que faziam e falava enrolado. A partir de hoje, eu nunca mais quero me sentir apátrida".
Sofrimentos
Patrícia contou que no primeiro Natal que passaram no Chile, os pais não tinham dinheiro para comprar presente de Natal. O filho Fernando, disse que nunca conseguiu um diploma devido às dificuldades escolares que passou com as mudanças. Pedro, o mais velho, contou que foi preso e barbaramente torturado com golpes na cabeça no Estádio Nacional.
A história da família Rabelo está contada no livro "Diáspora - o longo caminho do exílio". “Muito mais do que o valor da indenização, vale o reconhecimento do que foi nosso sofrimento, porque isso é fundamental para contar a história de um momento sinistro da vida brasileira. Fomos vítimas 20 anos do regime militar”, disse José Maria, o pai.
Em Cuba
Ernesto Carlos Dias do Nascimento, filho de Jovelina Mantovani que esteve presa com a presidente Dilma, foi banido por decreto presidencial aos dois anos de idade, acusado de terrorista e subversivo. O pai participava do movimento sindical de Osasco (SP) e das greves de 1968. Com dois anos de idade teve de mudar-se para a Argélia e depois Cuba, onde morou com a avó, que trabalhou na casa de Carlos Lamarca.
Ele viveu exilado em Cuba até 1986, onde fez um curso técnico de tecnologia mecânica e ferramentas, cujo diploma não foi reconhecido no Brasil. “Pra mim, o que seria mais interessante é a revalidação do diploma”. Ernesto vai receber pelos 16 anos de perseguição política, 480 salários mínimos, respeitado o teto de R$ 100 mil, e o reconhecimento do diploma de técnico.
Para o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, a sessão de análise dos casos dos filhos reflete elementos da transição ainda pendentes: “Ainda restam legados autoritários para serem removidos. Muitas vítimas não estão reabilitadas e ainda não possuem confiança nas instituições públicas. A Comissão de Anistia continuará cumprindo seu papel constitucional e histórico de construção da verdade e de reparação.”
Com informações do Ministério da Justiça
Essas pessoas que nasceram e cresceram nas prisões, que viram seus pais serem torturados, que sofreram a ausência repentina de seus entes queridos, certamente desenvolveram sequelas permanentes. A reparação ajuda mas não cura o mal que o Estado fez a essas pessoas.
ResponderExcluirconcordo
ExcluirTocar nos corpos para machucá-los e matar. Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal função de funcionários do Estado em nossa pátria brasileira após o golpe militar de 1964. Tocar nos corpos para destruí-los psicologicamente e humanamente. Macular pessoas e identidades. Perseguir líderes políticos e estudantis. Homens e mulheres, em sua maioria jovens.
ResponderExcluirCristianne
Como assim uma criança de dois anos de idade ser banida por decreto presidencial acusada de terrorista e subversiva?
ResponderExcluirO Estado fazer mal as pessoas é também uma sequela permanente. Basta revermos Pinheirinho, Cracolândia... etc etc...
ResponderExcluirBoa Marcia. O Estado que nos circunda, que deveria ser um útero, é abortivo. Filhos dessa pátria mãe gentil só ricos. O restante é, como direi, óvulo não fecundado.
ExcluirComo assim uma criança de dois anos de idade ser banida por decreto presidencial acusada de terrorista e subversiva?
ResponderExcluirSimples. Decifra-me ou te devoro.
ExcluirEntendo o sofrimento, as perdas, o exílio. Mas ao mesmo tempo não entendo o capitalismo, nosso grande inimigo, ressarcir a LUTA.
ResponderExcluirOrra cara, eram crianças. Essa reparação aí foi pra justamente isso, crianças brasileiras que não tiveram a chance de viver, crescer, estudar, no país em que foram paridas, porque seus pais eram ativistas políticos. Orra, quer coisa pior que isso?
ExcluirTem que ser reparado sim.
ResponderExcluirForam crianças retiradas do seio pátria. Enquanto outras tantas mamavam em tetas de vacas que falavam I love Brazil.
Embora nenhuma criança deva levar culpa.
É polêmico, mas concordo com o Jurandir. Não vou analisar se é necessário (“justo”) ou não, mas essa “remuneração” é indenização trabalhista, bem de acordo com a ideologia capitalista, o individuo foi impedido de trabalhar (independe se torturado ou torturtador é considerado trabalhador) então precisa ser ressarcido. A luta é o que menos importa, assim se desqualifica o movimento, todos são tratados igualmente: trabalhadores. Paciência, afinal sobreviver é preciso!
ResponderExcluirAna Maria Quintal
Também acho ambígua essa forma de reparação, pois monetiza o que era esforço ideológico.
ResponderExcluirDuarte Santana