Confira o depoimento da professora Marilena Chauí sobre o que foi viver na Universidade sob a intervenção da ditadura militar
A campanha pela instalação de uma Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (USP) começa a ganhar corpo e conta com apoios de peso. A Comissão propõe esclarecer graves violações de direitos humanos promovidas pela USP entre 1964 a 1985 contra professores, funcionários e estudantes considerados “subversivos” e contrários ao regime militar.
Lançada no dia 12 deste mês, com a participação de mais de 500 pessoas no campus Butantã, a Comissão da Verdade da USP tem o apoio de professores notáveis como Fábio Konder Comparato e Jorge Luiz Souto Maior, da Faculdade de Direito; Paul Singer, da Faculdade de Economia e Administração e Contabilidade; e Marilena Chauí, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Dos 475 mortos e desaparecidos reconhecidos pelo Estado brasileiro, estima-se que cerca de 40 pertenciam à comunidade uspiana. Se for criada a Comissão, documentos de todos os órgãos da Universidade, testemunhos e informações serão colhidos e pessoas serão convocadas a prestarem depoimentos sobre o período.
Resquícios da ditadura militar existem até hoje na USP como o Regimento Geral Disciplinar, imposto pelo Decreto 52.906 de 27 de março de 1972. Dentre outras atividades, o decreto prevê como falta grave promover atividades político-partidárias dentro do campus. Por meio dele, 51 pessoas estão sendo processadas, com risco de serem eliminadas do quadro universitário. Elas são estudantes e funcionários presos durante a reintegração de posse da reitoria e do Crusp e reconhecidos no meio universitário por lutarem pela Universidade pública e gratuita.
Durante o ato de lançamento da campanha, a professora Marilena Chauí fez uma intervenção emocionante. Ela falou sobre o que foi viver na USP sob a intervenção da ditadura, denunciou que professores contribuíram com o regime e mostrou que a parceria entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (Usaid), vigente até hoje, é um dos empecilhos para que a USP se torne verdadeiramente democrática.
Sobre o atual reitor, o professor João Grandino Rodas, conhecido no meio acadêmico por medidas da repressão aos movimentos organizados, Chauí ressaltou: "Este reitor foi formado, teve o aprendizado como dirigente, nesse caldo de cultura da ditadura. Essa forma de gestão explica essa coisa inacreditável. Isso nem a ditadura fez: pôr a polícia dentro do campus para espancar os alunos."
Leia o depoimento
Boa noite a todos e a todas, obrigada pelo convite. Quero começar fazendo duas colocações. A primeira, certamente você sabe, mas sou avó, como alguns colegas de colegial e faculdade. Nós (ela e Heleny Guariba) estudávamos juntas, ela que escolheu o meu namorado, com quem eu casei. Estive com ela na véspera do dia da prisão, foi a minha casa e tivemos uma longa conversa, fizemos planos, íamos nos ver no dia seguinte, mas eu não a vi mais. Entendo o que a Vera (Paiva) diz, levei muitos anos para enterrar, não podia admitir.
A segunda é de um outro colega meu, o (Luiz Roberto) Salinas, que não morreu na prisão, mas morreu por causa da prisão. Foi preso, torturado, e, na época, ele não fazia parte de nenhum movimento ou grupo, nada. Mas tinha feito muito antes, na altura de 64, e isso aconteceu no final dos anos 70. A esposa dele era jornalista e havia publicado uma matéria, os policiais, militares, não entenderam algumas palavras e interpretaram como um código. Foram ao apartamento deles e, como ela não estava, pegaram Salinas, que foi torturado no pau de arara dias a fio para dizer qual era o deciframento do código, das palavras do artigo da mulher dele. Não era código, não havia o que dizer e ele foi estraçalhado. O resultado dessa prisão: foi anulado, evidentemente, o estado físico do Salinas e o seu estado psíquico. Foram anos para ele se refazer, e nunca conseguiu realmente se refazer. Teve trombose nas duas pernas, tendo que cortar dedos dos pés e morreu com uma síncope. Ou seja, foi morto pela tortura. Amigo meu do coração, entramos juntos no Departamento de Filosofia e, juntos, nos tornamos professores no departamento.
Gostaria de contar para vocês como foi entrar no campus da USP em 1969, logo depois de dezembro de 1968, quando foi promulgado o AI 5. Você vinha para cá e não tinha nenhuma garantia de que não seria preso e torturado, portanto, não sabia se seus alunos estariam na classe e, quando você se dava conta de que alguns não estavam, não ousava perguntar se tinham faltado na aula, se tinham partido para o exílio, se já estavam presos ou se já estavam mortos. E a mesma coisa com relação aos colegas. Tínhamos o pessoal do Dops à paisana nas salas de aula e escutas na sala dos professores e no cafezinho. Éramos vigiados noite e dia.
Eu me lembro que em 1975 a Unicamp fez um congresso internacional de historiadores, e convidou Hobsbawn, Thompson, enfim, a esquerda internacional. Houve as exposições dos brasileiros e os estrangeiros disseram: Nós não estamos conseguindo entender nada do que vocês dizem, não entendemos as exposições e sobretudo não estamos entendendo os debates entre vocês. Então, nos demos conta que falávamos em uma língua cifrada para não sermos presos. A esquerda acadêmica criou um dialeto, uma linguagem própria na qual dizia tudo que queria dizer e não dizia nada que fosse compreensível fora do seu próprio circulo. Foi uma forma de auto defesa e uma forma de continuar produzindo, pensando e discutindo. Ao mesmo tempo, essa forma nos fechou num circulo no qual só nós nos identificávamos com nós mesmos. Isso é uma coisa importante, que a Comissão da Verdade traga o fato de você criar um dialeto, criar um conjunto de normas, de regras, de comportamento em relação aos outros, tendo em vista não ser preso, torturado e morto, durante anos a fio.
Costumo dizer aos mais novos que eles não avaliam o que é o medo, pânico. Sair e não saber se volta, sair e não saber se vai encontrar seus filhos em casa, sair e não saber se vai encontrar seu companheiro, ir para a escola e não saber se encontrará seus alunos e colegas. Você não sabe nada. Paira sobre você uma ameaça assustadora, de que tem o controle da sua vida e da sua morte. Isso foi a USP durante quase dez anos, todos os dias. Além das pessoas que iam desaparecendo, desaparecendo... Ao lado das cassações.
Eu teria gostado que a (Eunice) Durham pudesse ter vindo, porque quando ela fez parte da Adusp na gestão do Modesto Carvalhosa, fez o chamado “Livro negro da USP”, que tem o relato de como foram feitas as cassações. As cassações não vieram do alto. As congregações de cada instituto, de cada faculdade, se encarregavam de denunciar, de delatar e de fazer a cassação. Isso é uma coisa que a Comissão da Verdade precisa deixar muito claro, não foram forças lá de fora que fizeram isso, nem militares. Foram os civis acadêmicos, dentro da universidade, que fizeram uma limpeza de sangue. É uma coisa sinistra, mas foram nossos colegas que fizeram isto.
E, impávidos, quando começou a luta pela volta da democracia, quando começaram as greves no ABC, quando começaram as lutas pela diretas etc e tal, eu ia às assembleias da Adusp e do DCE e ficava lado a lado com muitos deles que estavam ali para fazer a defesa do retorno da democracia, quando eles tinham sido apoiadores da ditadura. E isto não pode ficar em branco. Uma Comissão da verdade tem que dizer isto.
E eu gostaria também, como uma contribuição ao trabalho da Comissão da Verdade, de retornar ao que o Eduardo e a Vera disseram, o fato de que a estrutura da nossa universidade, mais do que a estrutura de outras universidades que conseguiram se desfazer disso, é a mesma que a ditadura – através do MEC e do acordo MEC-USAID – introduziu no Brasil e aqui se cristalizou. Primeiro, foi feita uma chamada reforma universitária, e essa reforma universitária introduziu a ideia de créditos, a ideia de disciplinas obrigatórias e disciplinas optativas. Como a sustentação ideológica da ditadura era a classe média urbana, era preciso compensar a classe média pela falta de poder econômico e político e a compensação foi através do prestigio do diploma, abriu-se a industria do vestibular, que veio por decreto.
Ou seja, a universidade que vocês frequentam, a universidade que vocês cursam, a universidade que nós damos aula, é a universidade que foi estruturada a partir do Ato Institucional número 5. Em outras universidades, houve força suficiente, do corpo docente, do corpo dicente, para derrubar muita coisa. A estrutura curricular não, continuamos Brasil afora com disciplinas obrigatórias, optativas, créditos, frequência... A introdução dos créditos significou a escolarização da vida universitária. Em uma universidade você pode fazer duas ou três matérias no máximo e você deve ter duas a três horas de aula por semana para cada uma delas, no máximo. O ideal são duas matérias, cada uma delas com duas horas semanais para que você trabalhe o que ouviu em classe, vá para as bibliotecas e laboratórios, faça pesquisas e tenha efetivamente uma vida universitária. A reforma feita pela ditadura, ao escolarizar a universidade, transformou-a em um curso secundário avançado, em um colegial avançado. Isso a Comissão da Verdade tem que mostrar, mostrar as datas em que os decretos vieram, as datas de implantação, quem implantou tudo isso, não pode passar em branco também.
Uma outra coisa que é muito importante é o fato de que as contratações dos jovens professores naquele período não eram feitas nem pelos departamentos, nem pelos institutos, mas diretamente pela reitoria. Estou dizendo isso porque quero fazer um complemento depois a respeito da reitoria atual. Como é que a reitoria procedia? Ela recebia o processo de contratação e mandava para o Dops, para a policia enviar a ficha policial do professor e saber se ele tinha participado de algum movimento. A reitoria queria a ficha policial, que era a ficha política do jovem professor. Em função disso, a reitoria dizia se contratava ou não contratava.
Eu posso fazer um depoimento junto à Comissão da Verdade, se ela quiser, da experiência direta que tive sobre isso. Eu era chefe do Departamento de Filosofia, havia o processo de contratação de um jovem professor e a contratação não saía, os papeis estavam na reitoria e pedi para ser informada do porquê de a contratação não acontecer. Fui empurrada de uma sala para outra sala, para outra sala, e ninguém respondia. Finalmente, fui levada a uma sala ao lado da sala do reitor. Esta sala não tinha janelas, tinha uma porta e duas cadeiras com uma mesinha. Ali, um senhor, um civil, grisalho, muito bem afeiçoado, me mandou sentar e disse para mim: “Vou explicar para a senhora que esta sala não existe, eu não existo e a conversa que nós vamos ter nunca aconteceu. O professor não pode ser contratado porque ele esteve em um encontro estudantil terrorista, então ele não vai ser contratado, aqui está o processo.” E foi quando eu vi, estava tudo anotado a lápis, com as informações sobre ele vindas do Dops. Ainda me disse: “Eu sei que ele era um lambari, sei que não é um perigo para a segurança nacional, mas ele tem essa ficha e não vai ser contratado.” E ele foi contratado, evidentemente vocês podem imaginar o barulho que nós fizemos, todo o escândalo que fizemos e o risco que se corria se ele não fosse contratado. Mas, era uma intimidação direta, não tinha algum esconderijo, era direto, na cara. Eu posso, eu tenho o poder, eu faço e você engole.
A manutenção da estrutura da Universidade de São Paulo tal como ela foi feita a partir do Ato Institucional número 5 pela ditadura é algo que tem que ser devassado se nós quisermos democratizar a universidade. Para democratizar nossa universidade, temos que desmontar aquilo que foi feito no final dos anos sessenta e no decorrer dos anos setenta, é uma tarefa imensa que tem que ser feita. E por que ela tem que ser feita? Porque, no momento que há uma hegemonia no estado de São Paulo de um pensamento privatista e de um pensamento neoliberal, a Universidade de São Paulo está sendo regida por estes princípios, por este reitor. Não é só isso, esse reitor foi formado, teve o aprendizado dele, como dirigente, nesse caldo de cultura da ditadura. Portanto, é essa forma de gestão que explica essa coisa inacreditável, e isso nem a ditadura fez, de por a polícia dentro do campus para espancar os alunos.
E, para encerrar, me disponho a dar meus depoimentos para a Comissão da Verdade. Penso, como os que me precederam, que tem que ser apanhado um período longo, e penso que, como se trata da Comissão da Verdade da Universidade, no caso da Universidade de São Paulo, é preciso contar não só as histórias ligadas à violência de Estado, ao terrorismo de Estado sobre os professores e os alunos, mas a maneira pela qual a universidade foi estruturada para ser um órgão da violência, um órgão do autoritarismo. Ela foi estruturada com a cabeça da ditadura e é por isso que ela é autoritária. E é isso que a Comissão da Verdade pode mostrar ao desvendar a maneira pela qual essa estrutura foi montada. E Salinas presente, Heleny presente.
Acesse o site da campanha Por uma Comissão da Verdade na USP
Publicado originalmente pelo Brasil de Fato
A USP usa aparatos de guerra para defender seus interesses no regime político em que se sustenta e onde postula o princípio da autoridade que aplica com freqüência em detrimento das liberdades individuais.
ResponderExcluirBasta relembrarmos o que aconteceu por lá em fevereiro deste ano quando do despejo de estudantes do Conjunto Residencial da USP, o Crusp.
Para refrescar a memória transcrevo o depoimento de um dos estudantes, o Augusto Rolim:
"Foi um aparato de guerra utilizado contra a gente. Com certeza eram mais de 200 homens da Tropa de Choque, tinha helicóptero, e há relatos de que um batalhão da cavalaria no Portão 1 esperava para agir caso o comandante acionasse. Além de toda essa operação de guerra eles bloquearam a entrada de vários blocos do Crusp para impedir que os moradores descessem para socorrer o pessoal que estava na Moradia. Eles também entraram em andares do Bloco G, vizinhos à Moradia, e obrigaram os moradores a sair dos apartamentos, alguns até saíram com roupas íntimas e não deram nenhuma justificativa para isso. Revistaram os apartamentos em busca de algum estudante “subversivo” ou algum fato que pudesse incriminá-los. Uma questão muito marcante foi que, quando eles entraram na Moradia, além de exigirem o RG de todo mundo, também exigiram a carteirinha USP, o que mostra que eles estavam querendo provar que a Moradia Retomada era algo estranho à universidade, ocupado por pessoas que não têm vínculo com a USP, o que é uma grande mentira que o coordenador da Coseas, Waldir Antônio Jorge, vem reproduzindo há muito tempo. Na verdade, aquilo sempre foi uma moradia de estudantes da USP que abrigou estudantes de cursinhos populares aqui da Universidade, mas sempre todos foram estudantes e majoritariamente alunos da USP. Tanto é que no dia da reintegração eles encontraram 12 estudantes, sendo que desses três eram garotas namoradas de moradores e que estavam de visita. Algo super normal. Felizmente eles não conseguiram imputar essa pecha na Moradia, um argumento que poderia convencer uma classe média mais conservadora, mas nem isso eles conseguiram."
Todo mundo sabe que o Reitor da USP, o João Grandino Rodas, votou contra vítimas da ditadura e favoreceu os militares quando era membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, claro que ele só poderia permitir qualquer ação truculenta da PM no campus da USP.
ResponderExcluirPerfeitão dona Marilena é isso mesmo.
ResponderExcluirEsse caldão indigesto de tão podrão da ditadura serve só pra perdurar e dissiminar a violencia contra qualquer um que dele não queira ingerir. Toda atitude contra surrupiadores da liberdade tem minha total afeição.
Depois de mais essa aula de Marilena Chauí cabe-nos a reflexão sobre outra aula que ela nos deu:
ResponderExcluirAs pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer política.
Brunah Bill