
Quando em 1990 os arquivos da censura foram abertos, além do bafo amargo de um período de menosprezo as criações artísticas, a livre manifestação, a informação e principalmente aos sonhos e a vida, exalou também que a censura era muito bem estruturada e cumpria função estratégica no regime militar. Os censores eram preparados para interpretar mensagens políticas, participavam de cursos onde examinavam criteriosamente filmes de cineastas tidos como subversivos, como
Godard,
Truffaut,
Pasolini e
Antonioni, alguns até estudaram cinema em universidades para não deixar escapar nenhuma técnica velada que identificasse subversão.
Antes do golpe de 1964 a censura já existia, mas limitava-se a classificar os filmes por faixa etária. Depois do golpe ela é moldada a servir aos interesses do regime com uma atuação moralista, cortando palavrões, cenas libidinosas, exposição do corpo.
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de
Glauber Rocha, por exemplo, foi proibido para menores de 18 anos, mas não sofreu cortes, no parecer do censor não há qualquer alusão a mensagens políticas no filme.
De 1967 a 1968 ocorre a militarização da censura, que com o decreto AI-5 se torna totalmente ostensiva e implacável, com atuação de censores da alta patente, generais e coronéis com seus olhares totalmente fincados na preservação do estado repressor, onde qualquer manifestação contrária representava um atentado à segurança nacional. O AI-5 institui uma censura mais ferrenha nas artes, principalmente no cinema, cerceando a liberdade de expressão e criação artística dos cineastas. A proibição de filmes se torna prática comum.
Terra em Transe (1967), de
Glauber Rocha, foi proibido em todo território nacional por ser considerado subversivo e irreverente, a censora que o avaliou fez um relatório político e contundente onde destaca a frase que considera ameaça ao estado:
A praça é do povo e o céu é do condor.
Macunaíma (1969), dirigido por
Joaquim Pedro de Andrade, baseado na obra de
Mário de Andrade, também foi proibido, o censor identifica na roupa de uma personagem o símbolo da Aliança para o Progresso - organização voltada para a América Latina criada pelo presidente americano John Kennedy e contestada pelo regime militar - e manda apagar a cena.
Nesse universo de censores preparados para matar qualquer ideia que julgassem impertinente ao estado repressor que eles representavam, tudo era julgado e muita criação condenada. Em 1972, o cineasta
José Mojica Marins, o
Zé do Caixão, foi assombrado não apenas com a proibição, mas com a explosão irada de sua censora que declarou em sua justificativa pela não liberação do filme
À meia-noite encarnarei em teu cadáver: "
Se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor pelo assassinato à Sétima Arte, pois não foi outra coisa que ele realizou ao rodar o presente filme".
Na abertura política iniciada em 1975, a censura toma novos rumos. Filmes que antes seriam esfacelados começam a ser liberados sem ou com poucos cortes para o cinema. O alvo passou a ser outro: a TV. Eles perceberam que o público do cinema era restrito e que o controle precisava ser feito sobre a televisão, que chegava a todos os lugares e a todas as pessoas. Um caso exemplar é o de
Pixote, rodado em 1980, por
Hector Babenco e só liberado para a TV cinco anos depois, com 38 cenas censuradas.
Como disse o crítico francês
Georges Sadoul: “
Façam seus filmes, como for possível. Não parem. Porque um dia isso vai passar, e nesse dia seus filmes estarão lá, para contar essa história”.
Vale lembrar que os cortes eram feitos nas cópias. Com os originais preservados, a partir de 1988, com o fim da censura, os filmes puderam ser exibidos em sua íntegra e desfrutarem da apreciação do público, que é quem tem por direito gostar ou não de uma criação artística.
El Justicero (1963), de
Nelson Pereira dos Santos, é um caso raro de filme que teve até os negativos confiscados. Por anos, o cineasta deu
El Justicero como perdido, até que soube que havia uma cópia em 16 mm na Itália, para onde tinha sido levada pelo cineasta
David Neves.
A censura foi uma das mais poderosas armas de sustentação da ditadura militar brasileira. Competente e incisiva fez valer a vontade do regime militar. Calou, frustrou, destruiu impiedosamente caminhos almejados de muita gente e com isso controlou o público do que ele poderia ter ou não acesso.
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em um cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema".
Antonio Cícero
Fontes: Leonor Souza Pinto e Denise Assis