por João Peres e Virginia Toledo
Bater em cachorro trôpego não vale? Pode até valer, se o cachorro for sabidamente feroz e estiver ameaçando se levantar para novos ataques. Quando o projeto Brasil Nunca Mais foi criado, a ditadura encaminhava-se para o final, já dando seus tropeços, dentro da caserna o clima estava longe de ser harmônico, e da cabeça da advogada Eni Moreira não saía a memória de que é nestes momentos que as provas desaparecem. Quando o projeto chegou ao fim, a ditadura já tinha data marcada para ir embora, mas não os seus métodos de coerção, a herança de tortura que restaria a delegacias e corporações policiais de todo o país.
Entre 1979 e 1985, um restrito grupo de advogados trabalhou sob o manto protetor de dom Paulo Evaristo Arns para montar o primeiro retrato sistemático da repressão elaborado a partir dos próprios registros dos agentes do Estado. Eni Moreira, com a ideia fixa na cabeça e já presidindo o Comitê Brasileiro pela Anistia dos integrantes dos grupos de resistência ao regime, foi à Suíça pedir o auxílio financeiro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que reúne as entidades protestantes.
Recebeu de Charles Harper, de nacionalidade brasileira e norte-americana e membro do CMI, a resposta de que bancaria os trabalhos, mas com uma condição: era preciso o aval de dom Paulo e de Jaime Wright, pastor presbiteriano e amigo em comum de Harper e dom Paulo. “Quando narrei para ele essa história, ficou encantado, imediatamente deu o aval”, conta a advogada a respeito do primeiro contato com o cardeal.
Daí por diante, era articular ações. Wright, gordinho, ia até a Suíça buscar dinheiro, que trazia escondido debaixo da roupa. Tudo sem contar para a família, que não desconfiou porque o pastor sempre manteve uma intensa agenda de viagens, e ia e voltava com certa desenvoltura. “A gente sabia que existia um projeto, mas a gente não sabia exatamente o quê”, afirma Anita Wright, filha de Jaime. “Ele sabia que os telefones lá de casa talvez estivessem grampeados, mas nunca deixou de conversar com quem precisava conversar. Falava que isso era uma espécie de proteção. Dificilmente fariam alguma coisa com ele por causa desse contato.”
Aqui, Wright ajudou a montar a equipe. Eni, Paulo Vannuchi, Luiz Carlos Sigmaringa Seixas e Luiz Eduardo Greenhalgh eram alguns dos que trabalhavam sob sigilo. Valiam-se, como advogados, do direito de ter acesso aos processos dos clientes no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Fotocopiavam os documentos e os guardavam em São Paulo, em silenciosas operações. “O "guarda-chuva" que dom Paulo nos deu garantia uma certa tranquilidade. Quando havia alguma suspeita a gente mudava de lugar”, diz Eni. “É engraçado porque aqui no Brasil existe a cultura de que ninguém guarda segredo, e durante seis longos anos a gente trabalhou absolutamente em sigilo.”
Os arquivos, microfilmados por gente que não sabia do que se tratava, foram enviados à Europa e aos Estados Unidos, e apenas neste ano começaram a retornar. O mais importante, um livro que denunciava o modus operandi da ditadura, já estava pronto. Lançado em 1985, ficou durante meses na lista dos mais vendidos, e jamais foi negado por fontes do regime, já que se baseava em informações obtidas em depoimentos registrados pelo Estado.
Por segurança, apenas dom Paulo e Philip Potter, secretário-geral do CMI, assinaram a obra, cujos verdadeiros organizadores só seriam conhecidos muitos anos mais tarde – alguns preferem se manter em anonimato até hoje. As formas de tortura, as distorções das realidades, as “confissões” assinadas sob coerção, no entanto, tudo isso vinha à tona no momento em que os militares deixavam o comando do país. Com um quadro desses, para que a sociedade nunca mais aceitasse abrir mão da democracia.
Publicado originalmente em Rede Brasil Atual
Leia mais sobre o assunto em:
- Documentos da ditadura voltam ao Brasil. E a Comissão da Verdade, sai?
- Memória brasileira: sigilo ou vergonha?
- 52 mil páginas registram espionagem da Polícia Civil de SP
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Hoje, 14 de Setembro, dom Paulo Evaristo Arns completa 90 anos
Um brasileiro da melhor qualidade que pacientemente ensina que nunca se deve perder as esperanças e a vencer o medo em nome de um compromisso maior com o nosso tempo e a nossa gente.
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Dom Paulo fez um belíssimo trabalho pela liberdade do Brasil, este é um brasileiro de verdade.
ResponderExcluirAchei tudo muito interessante principalmente quando falam que por seis longos anos eles trabalharam no mais absoluto sigilo mesmo sob o slogan popular de que no Brasil ninguém guarda segredo. Isso mostra que guarda sim quando o assunto carrega consigo a seriedade e a necessidade da manutenção da vida.
ResponderExcluirIDEM EU SAMARA
ResponderExcluirO PESSOAL NUM TAVA BRINCANDO FIZERAM TUDO DIREITINHU MESMO
RAFA
Vejo o trabalho do Cardeal Arns e fico pensando nos que poderiam fazer coisas do bem para a nação e só destróem através do preconceito e do ódio.
ResponderExcluirComo é o caso do Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos/SP, que há pouco tempo atrás em entrevista ao jornal Valor ele voltou a vomitar contra o direito da mulher ao aborto mesmo em caso de estupro.
Ele vomitou o seguinte veneno:
“Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima… É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil”, comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. “Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre… Há os casos em que não é bem violência… [A mulher diz] “Não queria, não queria, mas aconteceu…”, diz. “Então sabe o que eu fazia?” Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. “Eu falava: bota aqui”, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. “Entendeu, né? Tem casos assim, do “ah, não queria, não queria, mas acabei deixando”.
Ana Clara