segunda-feira, 12 de março de 2012

"Repare bem" mostra resistência de três gerações de mulheres à ditadura

Documentário produzido por cineasta portuguesa mostra a luta feminina durante o período militar

por Suzana Vier

Encarnación, Denise e Eduarda. Três mulheres fortes, da mesma família, símbolos da resistência feminina à ditadura dão voz, corpo e alma ao documentário “Repare Bem”, exibido na última semana na Cinemateca Brasileira, na capital paulista. “A mulher é esse ser capaz de lutar, resistir e transformar a vida para depois prosseguir. Não é só na ditadura, é em todas as dificuldades da vida”, enfatizou Denise Crispim, depois de receber o certificado de anistiada política brasileira – junto com a filha Eduarda.

O certificado, um pedido de desculpas do Brasil aos torturados e mortos durante a ditadura, foi entregue por Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia e secretário nacional da Justiça do Ministério da Justiça, em sessão solene da 55ª Caravana da Anistia, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. “É parte da nossa luta em favor da memória, contra o esquecimento”, afirmou Abrão.

Encarnación é a mãe militante que cria Denise, Olga e Joelson – assassinado aos 22 anos pela ditadura. Denise, além de militante, é a esposa apaixonada de Eduardo Leite, o Bacuri. Presa enquanto estava grávida de Eduarda, Denise foi torturada, apesar de sua condição. “Só não me bateram na barriga”, expõe o documentário da diretora e atriz portuguesa Maria de Medeiros. O filme faz parte do projeto Marcas da Memória, do Ministério da Justiça, e será o primeiro a compor o acervo multimídia da Comissão de Anistia, que a Cinemateca Brasileira passará a abrigar.

Após a prisão da companheira, Bacuri também é preso e sofre 109 dias de tortura até ser morto, em dezembro de 1970, em quartel do Guarujá, litoral paulista. O último pedido que se sabe dele, feito ao delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) Sérgio Fernando Paranhos Fleury – e não atendido –, foi tocar na barriga da esposa, durante uma visita de cinco minutos, quando ambos estavam presos e ele já sofria seguidas sessões de tortura. Encarnación também foi presa.

A filha do casal, Eduarda, nasceu no Brasil, mas foi pequena com a mãe para o Chile e depois para a Itália. No novo país, tiveram uma batalha para refazer a vida, longe de casa e com o medo embutido na alma. Leonardo Ditta, atual marido de Denise, ajuda a criar Eduarda e, além de fazer parte do documentário, acompanha esposa e filha a todos os encontros com o passado delas e do Brasil.

Eduarda, que não conheceu o pai, expressa em uma das cenas do documentário, quando está diante da Comissão de Anistia, no Brasil: “Meu pai não pôde me pegar no colo”. Ela não pôde vê-lo e pouco sabia de sua história até o começo da adolescência, quando a mãe, em mais um momento de dificuldade, viu a filha estudando com filhos de fascistas. Denise explica à filha que foi aquele tipo de pensamento nazi-fascista que levou seu pai à morte. O momento dramático de encontro com o passado e a verdade livrou a filha de repetir o que agressores fizeram a seu pai e conhecer um pouco de sua mãe.

Eduarda só conseguiu incluir o nome do pai na certidão de nascimento em 2009 por determinação da Comissão de Anistia. Esse direito foi negado até publicação da portaria de anistia de Denise. “O documentário me propiciou traçar um retrato melhor do meu pai, mas principalmente conhecer mais minha mãe, suas lutas, suas dificuldades. Eu não sabia da história dela ser colocada numa jaula no zoológico com um animal feroz para que delatasse os companheiros.”

Entrevistada e filmada na Holanda, Eduarda diz que até há poucos anos teve medo de vir ao Brasil. Já na exibição do documentário, em fase de conclusão, anunciou que quer que o país seja sua casa. Ela procura emprego e pretende mudar-se para São Paulo, para “olhar nos olhos de sua própria história”, conhecer os familiares de seu pai e experimentar uma nova nação, da qual ela diz, agora, que não tem mais medo. “Tenho de ouvir histórias. Agora vamos fazer terapia todo mundo”, disse sobre o documentário.

Denise, que lembra ao longo de todo o filme do olhar doce e firme de seu companheiro – um apaixonado por crianças, de onde surgiu seu apelido Bacuri – analisa seu passado com lágrimas e gratidão ao país que pede perdão. Mas não deixa passar a oportunidade de dizer que quer saber a verdade sobre o que foi feito com seu marido até sua morte.

O documentário será lançado em todo o país até o final de outubro.

Suzana Vier / Rede Brasil Atual

2 comentários:

  1. Olhar nos olhos de nossa própria história, é isso mesmo, só assim podemos nos reconhecer.

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  2. Ao te ver "história" miro-me em um espelho
    Que logo devolve-me cada reflexo

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