sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
OS DESAPARECIDOS - poema de Affonso Romano de Sant’anna
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluiam
- mal ligavam o tôrno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.
Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
- na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz.
E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.
Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.
Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.
Affonso Romano de Sant'anna
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Lindo poema. A gente o lê num ritmo tão cadenciado que só um grande poeta é capaz de elaborá-lo assim tão perfeito.
ResponderExcluirÉ mesmo. Nele o poeta sintetiza toda loucura desse tempo que desfazia o cotidiano das pessoas como se não lhes pertencia, esvaecia beijos, tragos, alegria. Muito bom mesmo.
ResponderExcluirBOA TARDE. GOSTEI DO BLOG. TRATA DE ASSUNTOS QUE ME INTERESSAM.
ResponderExcluirMAX DANIEL
Quanta consistência nesses versos. Me deixa num misto de enternecimento e horror. Poetas como Affonso Romano conseguem representar em versos a essência da vida e da morte, transformam a vida em morte para alguns e a morte em vida para outros.
ResponderExcluirQue verso perturbador:
ResponderExcluirO desaparecido é como um rio
se tem nascente, tem foz
Se teve corpo, tem ou terá voz
Tão poucas palavras e transmite um todo, um tudo, um mundo de perspectivas para que nunca desanimenos de lutar pelos nossos ideais.
Bjos pessoal e sucesso hoje na apresentação da peça.
PRA MIM É MUITO PESADO ESSE POEMA.
ResponderExcluirJÁ FALEI PRA VCS Q MEU TIO DESAPARECEU ASSIM DO NADA. COMO ESSA PERSONAGEM AÍ DESCRITA, REGRESSAVA DO ESCRITORIO E SUMIU.
FALEI TAMBEM Q MINHA AVÓ NEM DEU CONTA, MAIS OU MENOS COMO SE DISSESSE: ELE MERECIA.
MINHA AVÓ ERA FASCISTA. CREDO. MAS ERA. MORREU. E ELA NAO VAI, AH NAO VAI, SAIR DE SUA SEPULTURA. REZO TODO DIA PARA Q NAO.
ABRAÇAO ARLEQUINS, ESTAVA COM SAUDADE. VIAJANDO MAS VOLTEI. FORÇA AÍ LOGO MAIS NA APRESENTAÇÃO.
Pois é Carlo, seu tio se foi e sua avó não merece ser revivida...
ResponderExcluir"Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam"
A cadeira certamente é de seu tio.
Fiquem em paz, nunca passivos, apenas em paz.
LU
...traigo
ResponderExcluirsangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...
desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ
COMPARTIENDO ILUSION
ARLEQUINS-ANA
CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...
AFECTUOSAMENTE : OS DESEO UNAS FIESTAS ENTRAÑABLES 2010- Y FELIZ AÑO 2011 CON TODO MI CORAZON….
ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE ACEBO CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER Y CHOCOLATE.
José
Ramón...
Versos retirados das entranhas de quem teve que engolir e digerir muita ruindade espargida pelo bicho homem.
ResponderExcluirDestaco esse:
Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
Bjs Arlequins
O quê ! Carlão na área.
ResponderExcluirOnde vc tava, cara ?
Agora com o retorno de Carlão fiquei sem palavras para os desaparecidos. Preciso fazer a digestão da volta desse cara para voltar a raciocinar... hehehehehehe
Tava com saudade de vc, irmão !
Mas que essa poesia é um chute na hipocrísia, ah é. Realmente inteira. Real Mente perversa dos que puseram em prática essa mágica desgraçada de fazer desaparecer gente.
E o poeta é meu xará com 2 ff... hehehe
"Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
ResponderExcluirPorque os poetas, sobretudo, desapareciam."
Desesperador isso. Ninguém pode calar a boca de outro alguém. Ninguém.
Carlão. Que bom encontrá-lo de novo. Fiquei meio cismado com sua ausência. Ela se deu logo depois que "tirei sarro" de um comentário seu. Desculpe-me irmão. Não tive chance antes, agora tenho. Fui leviano. Porque ninguém pode calar a boca de outro alguém. Ninguém. Nem com brindcadeiras de mau gosto como a minha. Bem-vindo Carlão.
Duros versos, poeta.
ResponderExcluirDifícil, muito difícil ouvi-los sem o coração disparar e o fôlego estancar.
Carlão não posso deixar de dizer-lhe bom retorno. Assim como Silvio pensei muito em você, em seu súbito desaparecimento. Não faça mais isso sem avisar. Suma se assim lhe prover, mas deixe ao menos um aviso que partiu e um porquê. Certo?
O poema é lindo, rasgado como foi nossa história desse tempo, só não entendi quem é Carlão.
ResponderExcluirLeandra
Poema impactante e intenso, retrata com ferocidade tempos tão cruéis que muitos de nós vivemos e que não deve nunca ser subjugado como algo normal e aceitável. Não às ditaduras, sempre! Elas só servem para fazer sangrar corpos, corações e mentes.
ResponderExcluirMatheus
Um poema muito significante para todos, quem passou ou não por esses momentos difíceis da nossa História. O poeta tem um trabalho árduo, a de transformar um momento ruim, em Arte.
ResponderExcluir