por Miguel Nicolelis
A voz suave e familiar - da mulher amiga e irmã - repetiu uma vez mais a frase, talvez nem pela necessidade de ênfase, mas para ter certeza de que a pitada de sabedoria nela contida não fosse subestimada ou esquecida. "A nossa vida não é nada mais que a soma dos nossos amores."
Dita assim, de surpresa, no final de uma conversa telefônica, no princípio da madrugada, ninguém suspeitaria, nem mesmo a autora, de que ali se encontrava um novo fio da meada para abordar um dos capítulos mais trágicos e vergonhosos da história brasileira, aquele cuja solução definitiva não pôde mais ser adiada, ou pior, empurrada com a barriga, como tem sido, sob pena de se cristalizar uma chaga incurável, um obstáculo moral intransponível para a construção de uma nação verdadeira e justa.
Em sua autobiografia, Nelson Mandela diz que se conhece a alma de um país pela forma como os seus presos são tratados. Parafraseando-o, eu modestamente acrescentaria que se pode também quantificar o caráter de uma nação pela maneira como retribui àqueles que lhe deram voluntária ou involuntariamente, a dádiva maior, a própria vida, pelo simples crime de amá-la demais. Pois se a vida de cada um de nós é construída sobre os alicerces dos nossos encontros e desencontros amorosos, também são os atos anônimos e inocentes de amor incondicional que esculpem o coração imaginário de toda uma nação. E não há prova maior de amor do que a perda da própria vida, a renúncia ao gozo da existência, da perda da luz do sol de cada dia e do brilho da lua de cada noite, a remoção forçada da convivência com tantos outros amores em prol de um ideal utópico de liberdade, igualdade e fraternidade que move a mente de alguns homens e mulheres, desde os tempos imemoriais dos nossos primeiros passeios de mãos dadas, sob os céus estrelados das savanas africanas.
Sem inúmeros, generosos e sinceros atos de amor não existiria uma nação brasileira para contar essa história trágica. Mas qual terá sido a retribuição dada, até o presente momento, àqueles que optaram ou foram violentamente conduzidos ao sacrifício máximo, apenas por dedicar a sua paixão a essa mulher maravilhosa e sedutora chamada Pátria Brasil? Que destino foi reservado àqueles (e aos seus outros amores) que pereceram (ou se tornaram prisioneiros pérpetuos) nos porões sórdidos de um país por eles tão querido e tão amado durante os anos de chumbo da ditadura militar instalada com o golpe de 1964? Para obter uma resposta basta-nos rever brevemente a saga de dois jovens que se apaixonaram perdidamente por essa mulher e como ela lhes retribuiu esse amor juvenil.
O caso de amor do primeiro deles, Antônio Carlos Cabral, me foi relatado no meu primeiro dia como aluno da Faculdade de Medicina na USP (FMU-SP), 32 anos atrás, em um folheto apócrifo e anônimo deixado no meu amário de calouro. Desse, eu só me lembro do título que permaneceu impresso na minha memória por todos esses anos "Cabral, vive!".
Nascido em São Paulo, em 14 de outubro de 1948, Cabral era aluno de graduação e presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da FMU-SP, uma das mais combativas entidades do movimento de resistência estudantil à ditadura. De acordo com os dados disponibilizados pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) e pelo Dossiê dos Mortos de Desaparecidos Político no Brasil, Cabral era militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e membro do Show Medicina, a trupe artística e irreverente da FMU-SP. De acordo com os documentos oficiais da ditadura, Cabral morreu durante tiroteio com a polícia, no dia 12 de abril de 1972, numa vizinhança do Rio de Janeiro. Como era hábito na época, nenhum dos fatos apurados subsequentemente corroboraram essa versão. Vizinhos que testemunharam a sua prisão desmentem a versão do tiroteio. Apesar do laudo da necropsia de Cabral, assinada pelos legistas Olympio Pereira da Silva e Jorge Nunes Amorim, determinar a causa da morte como resultante de ferimentos penetrantes fatais produzidos por arma de fogo, fotos do corpo, posteriormente encontradas nos arquivos do IML-RJ, exibem claros sinais de sevícias brutais, evidenciadas por placas de escoriações distribuídas pelas mãos, braços, tórax, face e fronte. Entregue em um caixão lacrado e com ordens para que esse não fosse aberto, o corpo mortal de Cabral voltou ao solo da pátria que ele tanto amou, tatuado pela conveniente tarja de "terrorista", o código que as ditaduras usam para justificar o assassinato de seus inimigos, a vasta maioria deles civis inocentes, sejam eles brasileiros, iraquianos, afegãos ou membros de qualquer outro povo lutando pela sua liberdade.
Eu lhe pergunto, meu caro leitor, que amante retribuiria assim o amor tão profundo que lhes oferecia um jovem brilhante de 25 anos, querido por pais, familiares, amigos e colegas estudantes? Cabral podia ter sido eu ou você, um de nossos filhos, netos ou nosso irmão.
A história de um segundo jovem apaixonado pelo Brasil chegou a mim pelas mãos generosas da minha querida irmã baiana, a jornalista Mariluce de Souza Moura, que me ajudava a coletar informações sobre meu colega Cabral. Nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 8 de julho de 1949, Gildo Macedo Lacerda morreu em Recife, em 1973, no final do período que ficou conhecido como "outubro sangrento". Outra liderança histórica do movimento estudantil da época. Gildo era militante da Ação Popular (AP). Depois de atuar no movimento estudantil de Minas, ser preso no Congresso da UNE em Ibiúna e de ser eleito vice-presidente dessa entidade em 1969, Gildo foi obrigado a cair na clandestinidade para se evadir da caçada nacional lançada pela polícia da ditadura. Transferido para Salvador pela AP, Gildo começou seu trabalho de organizar estudantes e trabalhadores. Em junho de 1972, Gildo encontrou outro dos seus grandes amores, a jovem Mariluce Moura, com quem se casou, meros três meses depois do primeiro encontro. O Brasil encontrara uma digna rival na vida amorosa de Gildo.
Ao meio-dia de 22 de outubro de 1973, o jovem militante, marido e futuro pai, Gildo Lacerda foi preso na porta de sua casa. No mesmo instante, na frente do Elevador Lacerda, Mariluce, grávida de um mês de Tessa, foi apreendida pela repressão baiana. Naquela noite, já presos no prédio da Polícia Federal, Mariluce e Gildo trocaram os seus últimos olhares silenciosos de amor, pois palavras não lhes foram permitidas trocar. Nunca mais.
Em um dos infinitos dias que se seguiram, durante uma sessão de tortura, Mariluce, grávida, foi informada de que Gildo tinha feito uma longa viagem. Dias depois, lhe comunicaram que Gildo Lacerda não era mais. Transferido para o DOI-CODI de Recife, Gildo pereceu sob tortura nos porões da ditadura. Na versão oficial, porém, a morte desse jovem, cujo único crime foi ter-se apaixonado perdidamente por duas mulheres maravilhosas, Pátria e Mariluce, deu-se por meio de tiroteio com seus comparsas, os quais Gildo, outro "terrorista", teria supostamente delatado à polícia. Nesses tempos não bastava torturar e matar o inimigo, era preciso também desonrá-lo e salgar o seu genoma, para que dele não germinasse mais nenhuma outra paixão igual. No caso de Gildo, nem o seu corpo sem vida foi jamais devolvido à Mariluce, Tessa, e suas netas.
Mas por que - perguntariam os leitores - abrir essas feridas tão horrorosas e expô-las, assim, sem paliativos ou bálsamo para a dor excruciante que elas hão certamente de causar, novamente, tanto em indivíduos envolvidos intimamente com cada uma dessas tragédias humanas, como para toda a nossa nação? Até que os responsáveis por tais atos de barbárie sejam trazidos à luz da justiça nacional, como ocorre na Argentina, e respondam por seus crimes, não haverá outra forma aceitável de retribuir o sangue derramado por inúmeros bravos brasileiros, que, como Cabral e Gildo, pagaram um preço incomensurável por seus lindos devaneios de amor. Se essa justificativa não lhes basta, some-se a ela uma tão ou mais terrível. Não, eu não me refiro à humilhante sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, condenando o Brasil pelo descumprimento duplo da Convenção Americana de Direitos Humanos e, no processo, expondo a realidade que a mais alta instância da justiça brasileira deixou de cumprir, mais uma vez, o seu dever cívico e histórico para com o povo brasileiro.
Não, eu me refiro ao fato corriqueiro, conhecido de qualquer casal de namorados: que aquele que não retribui o amor sincero à altura, corre o sério risco de jamais ser novamente amado com a mesma intensidade.
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Miguel Nicolelis, o olhar inteligente e original sobre nossa cultura e seus personagens de um homem que, mais do que um dos maiores cientistas do mundo, é um brasileiro extraordinário, apaixonado pelo país. Ficou conhecido por fazer com que macacos movessem braços robóticos usando apenas a força do pensamento. Um marco para a ciência que poderá reabilitar pessoas com paralisia corporal e que foi listado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como uma das dez tecnologias que podem mudar o mundo. Nicolelis também incentiva a formação de novos cientistas no Brasil. Ele é idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (RN) que, desde 2007, atende mais de mil crianças da rede pública de Natal e conta com uma filial em Serrinha (BA) para 400 alunos. Em Natal, Nicolelis se dedica a um projeto que deve entrar para a história da ciência. O desenvolvimento de uma roupa especial - resultado do consórcio Andar de Novo, formado por Brasil, Suíça, Estados Unidos e Alemanha -, que permitirá que um tetraplégico dê o "pontapé inicial" na abertura da Copa do Brasil, em 2014.
Atualmente Nicolelis também escreve na Revista Brasileiros, onde o texto "Da irreparável tragédia que foi morrer de amor pelo Brasil" foi publicado.
Me emocionei. Parabéns a vcs pela bela postagem e para o Nicolelis pelo excelente texto que reflete sem dúvidas o seu amor pelo Brasil.
ResponderExcluirContudente.
ResponderExcluirÉ Brasil, é bom mesmo que os responsáveis por tais atos de barbárie sejam trazidos à luz da justiça nacional para não deixar de ser querido.
Marcia Ap. Santos
Que texto bonito, adorei.
ResponderExcluirEsses ocorridos precisam ser ditos. A nossa história deste período no Brasil precisa ser reescrita e contada toda essa cruel verdade. Chega de pasmaceira e falsas afirmações que induzem o povo a pensar que os verdadeiros heróis dessa história são os militares. Heróis são o Cabral, o Gildo, que lutaram pelo país.
Abraços
Precisamos mesmo de pessoas, como o autor desse interessante texto, que por se sensibilizarem com esse período, sensibilize tambem a sociedade brasileira para apoiar essa retratação do Brasil de que cometemos sim crimes hediondos e que aos culpados seja aplicada a justiça.
ResponderExcluirGOSTEI MUITO. SENSIVEL E IRREVERENTE.
ResponderExcluirConcordo plenamente que esse assunto de não julgamento desses que mataram jovens inocentes não pode mais ser adiado e empurrado com a barriga como tem sido.
ResponderExcluirIsso só serve para a construção de uma nação de inverdades e injusta.
Justiça Já!!!
Espero fervorosamente que nossa presidenta, que também sofreu nas mãos dessa gente, mude a cara desse Brasil para um país que não se envergonhe de seu passado, pois ele foi desvendado e no sonho de fadas tinham muitas bruxas más.
Clara
MUITO BOM MESMO O TEXTO
ResponderExcluirDIFERENTE DE TUDO QUE JA LI A ESSE RESPEITO
MACIEL
Que pessoa extraordinária o Nicolelis, não só o seu texto me encantou, mas sua vida pessoal/profissional. Realmente um verdadeiro cidadão do mundo. Que usa sua inteligência para o bem social. Parabéns Nicolelis e a vocês do grupo de teatro por terem prestado esse serviço a nós.
ResponderExcluirBye Tereza.
Não tem problema não senhor Miguel Nicolelis de abrir essas feridas tão horrorosas e expô-las, assim, sem paliativos ou bálsamo para a dor que elas certamente causam... Não tem problema porque essa é a realidade, essas feridas só vão se cicatrizar no dia do julgamento desses assassinos de meninos. O Brasil, afinal, não correrá o sério risco de jamais ser novamente amado com a mesma intensidade...
ResponderExcluirGente, muito obrigada. Passei a manhã no google no yahoo e tudo que é lugar procurando esse texto para copiar é só o encontrava no formato jpg e agora procurando novamente no google eis que o encontro disponível aqui no bloguer de vocês. Valeu de coração. Abraços.
ResponderExcluirQue frase linda "Pois se a vida de cada um de nós é construída sobre os alicerces dos nossos encontros e desencontros amorosos, também são os atos anônimos e inocentes de amor incondicional que esculpem o coração imaginário de toda uma nação."
ResponderExcluirTexto perfeito, escrito das entranhas de quem sabe o que está falando, de quem realmente sente um amor incondicional por sua terra.
Acho que nunca li antes um texto assim tão sublime sobre esse tema tão cruel.
Salete Eiras
Ver os rostos desses meninos nas fotos me arrepia. Sabê-los mortos pelas mãos da amada. Torturados, tidos como inimigos, desonrados e exterminados da seiva da vida para que nunca mais amassem igual, só nos resta mesmo lutar pela punição de seus carrascos.
ResponderExcluir*li*
FIQUEI SEM FÕLEGO EM ALGUMAS PARTES DO TEXTO. ASSIM COMO DEMAIS PESSOAS QUE AQUI POSTARAM SUAS OPINIÕES, MUITO DIFÍCIL LIDAR COM ESSE ASSUNTO - JOVENS IDEALISTAS DE LIBERDADE PELO PAÍS BRASIL MORTOS PELO AMOR DEDICADO - MUITO DIFÍCL. O AUTOR DO TEXTO FALOU DE IRMÃO, NA ESSÊNCIA ESSES JOVENS SÃO NOSSOS IRMÃOS. POR ISSO CLAMO POR JUSTIÇA. QUE SEUS ASSASSINOS SEJAM JULGADOS, NÃO COMO JULGARAM, CONDENARAM E MATARAM ESSES JOVENS, MAS PELA LEI. COISA QUE ELES DESCONHECEM E NÃO CUMPREM E NÃO RESPEITAM. ESTOU COM MUITA RAIVA, TEXTOS ASSIM ME EMOCIONAM DEMAIS MAS RESSURGEM EM MIM A RAIVA QUE TENHO DESSA GENTE.
ResponderExcluirAFONSO
Carrascos = Empregadinhos = Serviçais. Essa é a melhor definição para essa gente. Porque no âmago dessa história, eles não eram mais do que subservientes de um poder maior. Carrascos executam ordens. Apenas isso.
ResponderExcluirNicolelis é dos meus. Quando ele decidiu anunciar publicamente seu apoio à então candidata Dilma Rousseff, a quem também apoiei, ele não hesitou em dizer os porquês dessa decisão. Que era uma opção vital para o futuro do Brasil. O futuro da inclusão social, o futuro em que as crianças que ainda nem nasceram possam ter a educação, saúde, ciência, tecnologia e a possibilidade de construir os seus sonhos pessoais sejam eles quais forem. Futuro que nós, a sua e a minha geração não tiveram. E um futuro que não leve o Brasil a retornar a um passado recente onde nós tínhamos, além da insegurança financeira, uma total falta de compromisso com o povo brasileiro e com a coisa brasileira. Que esse era um momento histórico para o Brasil. Que ele que viaja pelo mundo inteiro nunca viu o nome do Brasil e a reputação do Brasil tão alta e este é o momento de deslanchar de vez e não voltar para o passado.
ResponderExcluirE agora que ele me aparece com esse texto maravilhoso só tenho a admirar ainda mais.
Abração galera !
O moderador desse blog deve ser bom mesmo no que faz
ResponderExcluirnum vi nehum comentario aqui defendendo os que lutaram pelo regime que tambem morreram defendendo sua patria caramba afinal eles brigaram pelo que acreditavam num é?
HeBoy
Afê, que lindo, adorei.
ResponderExcluirSó uma coisa HeBoy, quantos dos que defendiam o regime militar foram mortos pela resistência ao regime? (Débora)
Sinto falta de registros desse período. Quando escrevo e falo sobre o que aconteceu no período da ditadura militar, alguns de meus mais jovens companheiros parecem duvidar que os fatos tenham realmente ocorrido. Que as narrativas desse período histórico recente se multipliquem de modo que as futuras gerações estejam sempre alertas na defesa da liberdade e das mudanças sociais que nosso país e nosso povo merecem e precisam. Abraços a todos e a todas.
ResponderExcluirNão resisti e li outra vez o texto. Tão lindo...
ResponderExcluirJosé Claudio. Penso como você. Sou educadora e sinto também muita falta do entendimento dos jovens nesse assunto. Por isso quando leio textos como o do Miguel Nicolelis, tão simples no entendimento, fico meio que empolgada que isso chegue aos jovens e os façam, enfim, compreender melhor esse tempo.
Qualé dona Débora, tá me zoando.
ResponderExcluirUm monte com certeza mas isso vcs num falam né. Como se eles num fossem gente.
Quero tbem saber quantos?
HeBoy
Cida. também li de novo. Admito, sou também mais um dos apaixonados por essa mesma mulher.
ResponderExcluirPS: Alguém sabe quantos para HeBOy se sossegar? kkkk
ResponderExcluirHeBoy.
ResponderExcluirSobre seu comentário de 16 de janeiro às 01:56h.
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Abraços