por Marcelo Rubens Paiva
Há 40 anos, à noite, duas mulheres foram presas ao desembarcar no Galeão, de um voo vindo do Chile.
Uma foi visitar o filho. A outra, a irmã, casada com ele. Exilados em Santiago, onde se reunia grande parte dos brasileiros perseguidos e banidos pelo regime militar, sob a proteção da ainda democracia de Allende.
Exilados e agentes duplos.
O voo era monitorado por agentes da Cisa, Centro de Informações da Aeronáutica, cuja sede era na Base Aérea do Galeão, ao lado. Havia informações de que as duas senhoras traziam cartas para amigos e familiares dos “terroristas”.
Foram presas dentro do avião e revistadas na Aeronáutica.
Encontraram, entre algumas cartas, duas para um tal Raul, com o telefone dele anotado no envelope.
Uma de agradecimento, de uma ex-estudante envolvida com o MR-8, que Raul ajudou a tirar do Brasil (filha de um dos seus melhores amigos).
Outra com uma análise sobre a luta armada e os exilados.
Raul era o codinome do meu pai.
Que, como muitos brasileiros, combatia a ditadura do jeito que dava: escondia perseguidos, tirava-os do Brasil por rotas secretas, dava passaporte falso, dinheiro, mandava relatos para a imprensa internacional (a daqui era censurada) sobre torturas e abusos dos direitos humanos.
Era parte da chamada “rede de apoio”, empresários, professores, cassados, profissionais liberais, cuja maioria nem defendia a luta armada, mas sabia que algo deveria ser feito, para mostrar que uma ditadura não pode passar sem resistência.
No dia seguinte, dia 20 de janeiro de 1971, nossa casa foi cercada e invadida.
Há exatos 40 anos.
Traziam metralhadoras e granadas.
Esperavam encontrar um aparelho subversivo na orla do Leblon.
Mas era apenas a casa de um casal jovem, de 41 anos, com 5 filhos pequenos, que se preparava para ir à praia, no feriado de São Sebastião.
Levaram Raul embora, mas parte da equipe ficou na casa.
Quem chegasse, era preso também.
Pulei o muro escondido, para levar um bilhete à vizinha. Dei a volta na quadra, para escapar dos olhos dos agentes. Bilhete escrito pela minha mãe, que avisava da prisão e pedia para ninguém aparecer.
Meu pai foi levado para o CISA e lá foi torturado.
No dia seguinte, o DOI/Codi, do Exército, que centralizava as operações de repressão política, soube que havia um “peixe grande” com a Aeronáutica, e o transferiu para as suas dependências, sede do I Exército.
E continuou a torturá-lo.
Sem sucesso, pelo visto, pois para lá levaram minha mãe e irmã de 14 anos.
Mas era tarde demais. Ele morrera.
Minha irmã foi liberada no dia seguinte.
Minha mãe, só 13 dias depois.
Que começou a luta que durou uma vida.
O Exército no início não admitia a prisão dele nem delas.
Depois, montou uma farsa, de que ele tinha fugido.
Sabemos hoje que ele morreu dois dias depois.
Tem-se até os nomes de quem o matou, sob o comando de quem.
Quanto ao seu corpo, há testemunhas de que fora enterrado no Recreio dos Bandeirantes, no Alto da Boa Vista, na Rio Santos, jogado de um avião, esquartejado...
É mais um na lista dos desaparecidos políticos.
Dia 20 de janeiro é o dia em que a família decretou a data de sua morte.
Não temos um jazigo, mas temos uma data artificial.
A morte requer rituais.
E a força da família se mobilizou para a Anistia, o fim da ditadura e muitas outras lutas.
Há 40 anos, este caso não se encerra.
Pois se o Estado não quer, assim será.
Sob as incongruências da Lei da Anistia, o Brasil nos pede para virar a página e esquecer.
Não, não dá para esquecer.
E saber que Rubens Paiva nunca foi guerrilheiro...
ResponderExcluirO Estado reconhece que houve barbárie, sob a forma de prisões arbitrárias, tortura, execução de prisioneiros, decapitações e esquartejamentos. Mas fica nisso...
A você Marcelo, que tanto admiro, meu afeto e meu desejo ardente que o estado queira encerrar esse caso, desvendando a morte de seu pai a você e a todos brasileiros que clamam pela verdade e pela justiça.
ResponderExcluirCris
A mãe de Marcelo, que há 40 começou a luta pela busca do pai de seus filhos, busca que dura uma vida, não está sozinha, tem muitas outras mulheres que passaram e ainda passam por essa situação. Muitas pelos desparecidos durante o regime militar e outras de hoje, por outros iguais ou diferentes motivos. É uma luta diária e infinita até que a lápide simbólica receba qualquer vestígio desse alguém certamente infinitamente amado. Meu respeito e meu voto de confiança que um dia isso termine a todas vocês. Nenhum Estado tem o direito de desmerecer a vida de um cidadão, nem quando morto.
ResponderExcluirMarcelo Rubens Paiva, gosto desse menino desde Feliz Ano Velho e vou gostar para sempre. Por sua trajetória como pensador atuante e agora por essa frase "... cuja maioria nem defendia a luta armada, mas sabia que algo deveria ser feito, para mostrar que uma ditadura não pode passar sem resistência". Muitos beijos a você Marcelo e ao Arlequins que não usa a rede para futilidades.
ResponderExcluirNomes? Serve Marival Chaves, ex-agente do DOI-Codi?
ResponderExcluirEm 2009, numa matéria referente a um documentário que seria exibido no Festival de Cinema de Brasília, a revelação feita por um ex-agente do DOI-Codi, o órgão de inteligência e repressão da ditadura militar, de que vários de seus inimigos, que se tornaram presos políticos, e cujos nomes passaram a figurar na lista de desaparecidos do regime, tiveram os corpos esquartejados, um deles, segundo um ex-agente, era o deputado Rubens Paiva.
A afirmação foi feita por Marival Chaves, ex-agente do DOI-Codi, em depoimento ao cineasta Jorge Oliveira para o filme "Perdão, Mister Fiel", cujo tema principal é a morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho, em São Paulo.
Disse Oliveira, "O que me surpreendeu foi que o sujeito contou várias atrocidades de cara limpa, com a maior tranquilidade. Ele disse que havia inclusive uma espécie de disputa entre os torturadores, a de apostar quantos pedaços iam render os corpos de cada uma das vítimas."
Não existe justiça nesse caso porque não interessa ao estado. Essa é a verdade. Nos contentemos com livros, teatro, cinema, por enquanto... Por enquanto... porque não há mal que para sempre dure.
Num entendo mais nada. Se agentes do tal Doi testemunham que eram bárbaros torturadores famigerados escravos de um regime carniceiro truculento impiedoso, porque arrastar mais essa história? Por um fim nisso trará paz a pessoas que há 40 anos querem no mínimo dormir em paz.
ResponderExcluirMatheus
sei q nao queria ter na minha lembranca dia 20 de janeiro de 1971 nem dia nenhum pra lembrar q um alguem meu partiu sem querer ter e estar partido
ResponderExcluirmarcelo te gosto D+
pax
Rubens Paiva, para o estado, é mais um na lista dos desaparecidos políticos. Mas não é apenas mais um para a gente que não se refere às pessoas como números e sim como nomes. Rubens Paiva é único como todos os outros, com seus nomes e sobrenomes, que foram retirados de cena da ditadura brasileira, e merecem ser justiçados.
ResponderExcluirque situaçao
ResponderExcluirnao sei tbm pq nao resolvem logo esses casos e dao um basta na agonia dessas pessoas que ficam ai a cada dia recebendo de fontes diversas falsas noticias de seus parentes desaparecidos
acho td isso uma falta de respeito danada com o povo brasileiro
O Homem é o único animal que pode permanecer, em termos amigáveis, ao lado das vitimas que pretende engolir, antes de engoli-las.
ResponderExcluirNossa, que barbaridade viver assim sem saber e receber todo tipo de informação sobre como um pai morreu. Marcelo querido, estou com você nessa, não na lamentação, porque sei que você não é disso, mas na força. Muita força, meu irmão !!!
ResponderExcluirBoa, Marcelo. Muito boa.
ResponderExcluirMas ao mesmo tempo não aceito que "se o Estado não quer, assim será"
Enquanto houver pessoas atuantes e perseverantes esse estado de omissão um dia vai acabar.
Entendo que 40 anos é muito para quem vive na pele. Desculpa.
Abração, Marcelo. Admiro muito o seu trabalho. Tenho e li todos os seus livros. Força!
Quando nada parece dar certo, vou ver o cortador de pedras martelando sua rocha talvez 100 vezes, sem que uma única rachadura apareça. Mas na centésima primeira martelada a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu isso, mas todas as que vieram antes.
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