quinta-feira, 4 de agosto de 2011

52 mil páginas registram espionagem da Polícia Civil de SP

Até 1999, central de arapongagem espionou partidos, autoridades nacionais, políticos, movimentos sociais, igrejas e sindicatos

por Ricardo Galhardo

A Polícia Civil de São Paulo espionou clandestinamente partidos, líderes políticos, autoridades estaduais e nacionais, movimentos sociais, igrejas e sindicatos até 1999, quase 15 anos depois do fim da ditadura militar (1964-1985). A existência de uma central de arapongagem política em pleno período democrático está registrada em mais de 50 mil documentos disponibilizados pelo Arquivo Público do Estado aos quais o iG teve acesso.

Segundo os documentos, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil (DCS), criado em 1983 pelo governador Franco Montoro e extinto em 1999 no segundo mandato de Mário Covas, infiltrava agentes em assembléias sindicais e reuniões partidárias, fotografava e documentava atos políticos e acompanhava de perto as principais lideranças e entidades sem que houvesse qualquer indício de crime que justificasse a ação policial.

Entre os investigados estão os ex-presidentes Tancredo Neves, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, nomes importantes da política nacional nas últimas décadas como Ulysses Guimarães, Mário Covas, José Dirceu, Antonio Palocci, Paulo Maluf, Leonel Brizola, Miguel Arraes e José Serra, além de personalidades do mundo artístico, religioso e esportivo que participaram da luta pela redemocratização, como Chico Buarque de Holanda, Fafá de Belém, Maytê Proença, Martinho da Vila, Ligia Fagundes Telles, Renata Sorrah, Bruna Lombardi, Dom Paulo Evaristo Arns, Edir Macedo e os ex-jogadores Sócrates e Casagrande.

A Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, União Nacional dos Estudantes (UNE), Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Arquidiocese de São Paulo, Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra (MST), os principais partidos políticos e até notícias sobre objetos voadores não identificados também foram objetos de bisbilhotice do DCS.

Os documentos mostram que desde o primeiro momento os arapongas espionavam até mesmo seus superiores hierárquicos. Um dos papéis aponta a presença de agentes infiltrados em um ato pela humanização do sistema carcerário, promovido pelo então secretário estadual de Justiça José Carlos Dias com a presença do secretário de Segurança Pública Michel Temer (hoje vice-presidente da República) e do próprio governador Montoro e seu vice, Orestes Quércia, no Pateo do Colégio, em 11 de julho de 1984.

O DCS foi criado no mesmo ano em que foi extinto o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), um dos símbolos da tortura e desrespeito aos direitos humanos do regime militar. Alguns integrantes da primeira equipe do DCS são remanescentes do DOPS. É o caso do delegado Clyde Gaya da Costa, já falecido, citado como responsável por torturas no relatório Brasil Nunca Mais.

Um questionário elaborado pelo delegado Eduardo Nardi foi distribuído para todas as delegacias paulistas. “Para que o DCS possa informar o governador da situação geral dos municípios dando destaque às informações de cunho político e social obsequiamos informar ao DCS todos os fatos político-sociais relevantes, via telex, para fins de atualização cadastral”, dizia a mensagem.

A resposta foram centenas de relatórios detalhados informando nome, endereço e filiação política de todas as autoridades municipais, composição e localização de todos os partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais em cada município paulista.

A forma como a documentação era arquivada com fichas organizadas por códigos alfa-numéricos também remete ao extinto DOPS. O DCS ficava em uma sala de acesso restrito no Palácio da Polícia, no bairro da Luz. Ao contrário do DOPS, onde milhares de pessoas foram torturadas e assassinadas durante a ditadura militar, o DCS se restringia a coletar e armazenar informações. Não há registro de ações concretas, prisões ou inquéritos, decorrentes do trabalho dos arapongas.

Dois delegados, que trabalharam no DCS e concordaram em falar ao iG com a condição de que seus nomes fossem mantidos em sigilo, disseram que a finalidade da espionagem mudava conforme o avanço da democratização e os interesses dos governantes.

“No primeiro momento registrávamos tudo por causa da possibilidade de os militares reassumirem o poder. Hoje isso pode parecer absurdo, mas naqueles primeiros anos de abertura política era uma possibilidade que passava pela cabeça de todos”, disse um dos delegados.

Na fase final, os alvos preferenciais das investigações eram movimentos populares vistos como ameaças em potencial ou adversários políticos. “Através daqueles arquivos é possível contar toda a história do MST, por exemplo”, disse outro delegado. “Também coletávamos muita informação sobre casos de corrupção envolvendo adversários políticos”, completou.

Ambos delegados admitiram que boa parte das atividades do DCS era exercida sem que houvesse ordem ou sequer conhecimento das autoridades. “Era um órgão paralelo, praticamente clandestino. Cumpríamos ordens mas muita coisa era feita sem que o secretário ou o governador soubessem. Montoro, Covas e o próprio Quércia eram democratas. Alguns delegados eram remanescentes do grupo do Fleury (Sérgio Paranhos Fleury, delegado morto em 1979, acusado de tortura e assassinatos durante a ditadura) ou tinham ligação com o coronel Erasmo Dias e com a extrema direita”, disse o mais velho deles.

O DCS atravessou os governos Montoro, Orestes Quércia, Luiz Antonio Fleury Filho e o primeiro mandato de Covas. Em janeiro de 1999, deputados estaduais de oposição revelaram a existência do departamento. Uma comissão da Assembleia Legislativa analisou parte dos documentos e concluiu que o DCS não passava de um órgão de polícia política. Pressionado, Covas, que também foi objeto de arapongagem, determinou a extinção do departamento.

O iG procurou a Secretaria de Segurança Pública e todos os secretários ainda vivos, mas ninguém quis comentar o assunto.

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Com Collor, Forças Armadas mantiveram espionagem política até 91

Senador e ex-presidente é um dos maiores opositores à abertura dos arquivos secretos do governo; ele defende o sigilo eterno

Documentos confidenciais disponibilizados recentemente pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo mostram que as Forças Armadas mantiveram um esquema de espionagem política até 1991, quando o presidente era Fernando Collor de Mello. Atualmente Collor é senador pelo PTB-AL e um dos maiores opositores à abertura dos arquivos secretos do governo.

Os papéis encontrados no extinto Departamento de Comunicação Social (DCS) da Polícia Civil de São Paulo mostram que Exército, Marinha e Aeronáutica compartilhavam relatórios de teor exclusivamente político entre si e com órgãos estaduais de segurança como as polícias Militar e Civil, além da Polícia Federal. Entre os investigados estavam partidos de oposição, sindicatos, movimentos sociais e militantes de esquerda. Os documentos sugerem que as Forças Armadas infiltravam agentes em assembleias de trabalhadores, reuniões partidárias, atos com conotação esquerdista e até instituições como a Câmara Municipal de São Paulo.

As incursões clandestinas viravam relatórios, todos com carimbo “confidencial”, que eram distribuídos em uma espécie de rede de informações que incluía setores das Forças Armadas como o Centro de Inteligência do Exército (CIE), 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia, 4º Comando Aéreo Regional (4º Comar), Comando Militar Sudoeste (CMSE), Superintendência Regional da Polícia Federal, Polícia Militar do Estado de São Paulo e o DCS da Polícia Civil, entre outros.

Em uma rápida pesquisa nos arquivos do DCS, o iG encontrou seis documentos com timbre das Forças Armadas. Dois deles dizem respeito ao PC do B, um ciclo de debates sobre “Problemas do Socialismo e Situação Mundial” e a participação da Corrente Sindical Classista, braço sindical do partido, no 4º Congresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

O terceiro documento relata a realização de encontros zonais e municipais do PT preparatórios ao 1º Congresso Nacional do partido.

O quarto documento relata uma sessão solene da Câmara Municipal de São Paulo em “Homenagem à Amizade Entre os Povos Brasileiro e Cubano e Pelo Fim do Bloqueio Econômico a Cuba”, no dia 27 de setembro de 1991.

O quinto documento reproduz um suplemento do Departamento de Estudos Sócio-Econômicos e Políticos da CUT e cita nomes de dirigentes como os de Osvaldo Bargas e Jorge Lorenzetti que, 15 anos depois, protagonizariam o escândalo dos aloprados.

O sexto papel é um relatório sobre a decisão da CUT de apoiar a Contag e, assim, passar a influenciar três mil sindicatos rurais e 22 federações.

Todos os papéis têm conteúdo exclusivamente político. Nenhum relatório registra ameaças de violência, desobediência civil ou qualquer outro fato que justifique a ação dos militares.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o senado Fernando Collor disse que desconhecia as atividades.

O iG procurou a assessoria de imprensa do Exército que, depois de saber o teor da reportagem disse que a resposta caberia ao Ministério da Defesa pois os fatos envolvem as três forças. O ministério foi procurado por telefone. Assessores do ministro Nelson Jobim pediram que as questões fossem encaminhadas por e-mail. O iG encaminhou a mensagem, mas não recebeu resposta.

publicado em iG São Paulo

Foto: Agência Estado

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2 comentários:

  1. Essa que os arapongas espionavam até mesmo seus superiores hierárquicos é o cúmulo da desconfiança.
    Vander Campos

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  2. Quanta contradição. Se alguns delegados eram remanescentes do grupo do Fleury, delegado torturador e assassino durante a ditadura, ou tinham ligação com o coronel Erasmo Dias e com a extrema direita, como assim a justificativa deles de dizer que “no primeiro momento registrávamos tudo por causa da possibilidade de os militares reassumirem o poder... " Bem, não por medo de reassumirem, assim me parece.

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