sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A memória é um fator de decisão do presente

por Joana Tavares

Armazém reúne documentos de diversas lutas do povo brasileiro e disponibiliza divulgação

Um armazém é aquele local onde ficam os produtos à espera que alguém os transforme em outra coisa, seja em outros produtos, seja em artigos de consumo. No Armazém Memória, os produtos não são mercadorias, são inúmeros jornais, livros, filmes e documentos de diversas lutas do povo brasileiro, à disposição para serem lidos, estudados, divulgados e transformados em ação. Com a ideia de facilitar o acesso à memória e assim participar da construção contínua da história, Marcelo Zelic é a pessoa por trás do armazém virtual que articula projetos e parcerias para garantir sua atividade constante. Nesta entrevista, ele conta a inspiração do projeto e suas novidades para o período.

Brasil de Fato – Como você chegou ao trabalho social e ao interesse pela memória?

Marcelo Zelic – Quando eu tinha 18 anos, fui fazer trabalho com as comunidades em Santo Amaro, em São Paulo. Saí da faculdade de jornalismo e fui fazer comunicação popular. Foi quando conheci os sem-terra, que estavam se organizando naquele período. A gente apoiava os acampamentos do ponto de vista da favela, onde eu morava com um grupo de pessoas que também atuavam. Trabalhando com a educação popular, a gente sentia a necessidade de fazer o período da ditadura conhecido. E olha que era 1985, 1986, estávamos saindo daquilo. A gente era um grupo ligado ao movimento de favelas. Mas quando conhecemos a realidade do pessoal que estava organizando o MST, a gente atuava para que o povo da favela fosse para o campo. A gente tinha uma visão de que a reforma agrária é uma saída urbana, não é uma saída rural só. Na época, era um absurdo falar isso, chegamos a ser hostilizados, os caras riam da nossa cara quando a gente falava que queria o êxodo urbano. E hoje é uma realidade. As cidades estão tão inchadas, tão problemáticas, e a saída é a ocupação do solo rural.

E onde entrou a memória?

No âmbito da memória, fui formado no Centro de Pesquisa e Documentação Vergueiro, o CPV. A universidade não oferecia o que o CPV oferecia, como, por exemplo, criar um material de audiovisual e reflexões sobre o papel das ferramentas. Como uma matéria de jornal pode ser geradora de debate? Não que o debate seja construído a partir do que a matéria diz, mas do que as pessoas discutem e interpretam a partir não só das matérias, mas de slides, de programas de rádio, cartazes. Tudo era ferramenta para que a gente fizesse o trabalho de educação popular. Temos que pesquisar isso, porque o ascenso das lutas nos anos 80 se deu com essas ferramentas, não com outras. Sempre tinha um conceito muito claro: o conhecimento tinha que ser construído naquele grupo. O resgate dessas experiências é uma das grandes preocupações hoje do Armazém Memória.

Depois de Santo Amaro, onde você foi atuar?

Fiquei uns 12 anos parado. Em 2001, saí de um restaurante que administrava e estava tendo um puta pau na Avenida Paulista, em uma luta contra a Alca. Vi uma cena que marcou: um menino enfiou o dedo na cara do policial – que estava sem tarja de identificação – e ficou falando: ‘isso aqui é um Estado Democrático de Direito’. Em seguida o moleque apanhou, claro. Cheguei a puxar o policial, falar: ‘porra, é um menino’. E fui embora com isso. Pensei: está na hora de parar de ficar sentado. Voltei para as favelas onde atuei, tinha umas melhorias, conjuntos habitacionais e tudo. Mas na margem delas, tinha toda uma favela de madeira, tipo palafitas, que não existiam naquela época. Pensei: não vai ser aqui o trabalho, é enxugar gelo. E o menino com aquele dedo no policial me enchendo o saco. Aí caiu a ficha: falta memória para esse menino. Dali surgiu a vontade de voltar a atuar com memória.

Como surgiu a ideia do Armazém Memória?

Tomei uma porrada que salvou o Armazém de ser mais uma coisa parecida com tantas outras. Um dia liguei para uma figura, falando que tinha uma ideia, que queria entrevistá-la. Ela falou para eu ligar para um jornalista, que ela tinha acabado de falar tudo pra ele. Fui dormir arrasado, mas acordei novo. Essa mulher estava corretíssima. A memória é algo coletivo. Não é o depoimento que ela deu ao jornalista tal, mas é o depoimento. Se o Armazém for sair coletando de novo tudo que já foi coletado, está errado, estou enxugando gelo. Daí veio todo o centro do Armazém, o resgate coletivo da história, fazer um trabalho de inteligência que pudesse mapear a memória, avaliar o seu estado, porque memória apodrece. Depois daquela conversa, comecei a mapear os centros de documentação, e comecei a estudar tecnologia. Porque memória sem acesso não é memória. Encontrei lugares sofrendo muito para manter viva a memória, sem recursos, sem pessoal, com documentos em caixa apodrecendo. E pensei que aquilo tinha que ir para a internet. O primeiro grande tema foi à reforma agrária, foi aí que o Armazém Memória deu seu primeiro passo, digitalizando a revista da Abra [Associação Brasileira de Reforma Agrária]. Enquanto estava fazendo a revista, tropecei numa empresa – a DocPro – que criava bibliotecas inteligentes. É uma empresa de tecnologia brasileira, porém privada, que faz uma coisa fascinante, que permite o diálogo. A tecnologia da DocPro saía da amarração arquivística, em que você tem que fazer a leitura de tudo para indexar. Você digita a palavra e ela aparece em todos os arquivos. A tecnologia tem que estar ligada ao motor da educação: a curiosidade. A biblioteca inteligente mostra só o que você pesquisou, vai direto na palavra que você procura e te anima a continuar pesquisando. É uma ferramenta muito mais indicada para política pública do que o PDF.

Qual a articulação hoje em torno da memória?

Um dos eixos do Armazém é a ditadura militar, com o centro de referência virtual do projeto do “Brasil: Nunca Mais”. Dom Paulo publicou somente 25 exemplares do relatório, que é muito grande, tem mais de sete mil páginas. A única cópia digital que existia estava em Chicago, num disquete flexível, cuja tecnologia já estava superada há anos, não tinha máquina para ler mais. Então fui atrás das cópias impressas, e vi que já estava em estado precário, tinha que correr para fazer. Construímos parceria com o Ministério Público Federal, OAB do Rio, Arquivo Público de São Paulo, Conselho Mundial de Igrejas e fizemos o projeto de digitalização. Todo esse acúmulo do “Brasil: Nunca Mais” gerou um projeto, que foi apresentado para a Secretaria de Direitos Humanos, que não teve muito eco, foi uma pena. Mas tive um contato legal com o Arquivo Nacional, e deu para mostrar que era possível essa coisa do acesso. Dessa relação gerou todo um projeto de política pública, com envolvimento de mais de 65 instituições, formando uma rede arquivística nacional que tem o acesso como ponto central. Claro que caminha devagar, há erros, falta recurso, mas o fato é que isso deslocou o eixo da política de arquivos. Essa experiência levou a perceber a potencialidade que tinha a semente do “Brasil, Nunca mais”. O acesso tem que ser uma política educacional. É muito importante agregar todas essas pessoas e instituições em prol de um trabalho onde direito, memória e verdade não é um chavão, mas uma prática pedagógica de cidadania, revalorar o sentido de direitos humanos na sociedade com perspectiva histórica. Hoje a gente concretiza o “Brasil: Nunca mais” com parte desses parceiros, mas infelizmente o Estado ficou de fora. Está sendo repatriado todo o material, tudo está sendo digitalizado.

Quais políticas públicas poderiam ser feitas em torno da questão do acesso à memória?

Uma das ideias antigas é fazer CDRoom para trabalhar nas escolas. Mas aí pegaram essa ideia, sempre tem uns espertos que querem fazer sozinhos, e fizeram um tal de DVD para entregar nas escolas. Mas retrocederam toda a discussão que se fazia no meio arquivísitico, fizeram uma coisa estática. Porque o documento de arquivo não é para ser entendido como uma ilustração. Que rico seria se o aluno do ensino médio ou o professor recebesse um CD com o “Brasil: Nunca Mais” inteiro. Ele poderia ler o depoimento das pessoas, poderia ler a metodologia, poderia deixar a curiosidade trabalhar. Poderiam ter CDs sobre escravidão, sobre vários temas... Existe a necessidade, para o avanço da sociedade, de se relacionar com o passado. Nas sociedades indígenas, de tradição oral, a transmissão de conhecimento é fundamental. Naquele filme “Dança com Lobos” tem uma cena muito bonita. Os caras começam a chegar lá, o índio mais velho pega um negócio e mostra para os mais jovens: é um capacete espanhol. Ele não precisa falar mais nada, a imagem dizia: ‘não se iludam com forasteiros, porque nós já vivemos com esses’. Essa troca de conhecimento e aprimoramento da sociedade se dá pela troca de experiências entre gerações. A luta da memória faz parte da luta de classes. Mas a ênfase marxista na economia sempre deixou a desejar nesse aspecto. A memória está a serviço da atitude. O índio mostra o capacete não para contar uma bravata, mas para que o jovem, que não conhece a luta, saiba que aí tem merda. A memória é um fator de decisão do presente. Por isso que falamos que nosso país é um país sem memória, as elites não querem que a gente exercite esse contato entre gerações.

Quais são os eixos do Armazém Memória?

Além do eixo da reforma agrária e da ditadura, tem o do movimento sindical. Nesse, tem todos os jornais da CUT, que deveriam ser lidos por todos que se propõem a construir algo novo, saber por quais mudanças e situações a CUT passou para ser o que é hoje. Tem um material pequeno, mas significativo, dos direitos da criança e do adolescente, materiais do método de Paulo Freire, filmes e outros em fase de construção. Temos muitos projetos, como a cartilhoteca, a cordelteca, um banco de história oral... O Armazém Memória resgata memória social, esse é o corte, a identidade política. O Armazém desenvolve também o conceito da biblioteca pública virtual. Assim como um indivíduo pode pegar livros na biblioteca, também pode na internet; você pode escolher e ler o livro no seu computador, mas não pode baixar, assim como não pode xerocar aqueles da biblioteca. Por que não podemos ter uma biblioteca pública virtual nacional? Ninguém vai deixar de comprar um livro porque está disponível na internet. Se for verdade que a cultura resolve parte dos problemas do país, que a educação traz desenvolvimento, por que não há ferramentas de efetiva socialização de acesso ao conteúdo? O Armazém taí pra provar que é possível fazer, ainda que em pequena escala, porque não tem recurso para memória. Se são 2% do orçamento para a cultura, imagina quanto vai para a memória?
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Marcelo Zelic é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória

www.armazemmemoria.com.br



publicado originalmente em Brasil de Fato

4 comentários:

  1. Ótima iniciativa de Zelic, a facilitação do acesso à memória é fator insubstituível na construção contínua da história.
    Mirian Justino

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  2. Ótimo mesmo. Pois um povo que não conhece sua história não tem a menor noção do que acontece no presente e corre o sério risco de comprar o famoso gato por lebre tão vendido pela grande mídia. Visto a recente revelação do Boni da manipulação feita pela Globo para que Lula nunca viesse a ser presidente, conduzindo toda sua audiência para votar em Collor. E votaram. E todos nós vimos o balaio de gato que aconteceu que culminou num unissono Fora Collor. Temos que conhecer nossa história sim para sabermos com quem estamos lidando.

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  3. Vim conhecer seu blog, atraves dos TOP 3 do Premio Top Blog!
    Parabens!
    bjs Sandra
    http://projetandopessoas.blogspot.com//

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  4. Olá, Sandra...
    Obrigado pela visita... Retribuimos...
    Parabéns pelo seu blog, muito bonito, e também por estarem no TOP100.
    Beijos

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