quarta-feira, 15 de junho de 2011

Filhos da indigna Dita

por Iná Camargo Costa

Não pode ser mera coincidência a estréia de uma peça que apresenta os coturnos da ditadura como adereço de cena permanente e o empenho dos remanescentes da supra dita em Brasília para manter em “sigilo eterno” documentos que explicam aspectos sombrios da história do Brasil. Não se trata de reincidência, mas de coerência: assim como eles ajudaram a eliminar os adversários, inclusive fisicamente, agora concorrem para impedir o aparecimento da verdade sobre os inúmeros crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado imperial brasileiro (e depois pela República) contra as repúblicas vizinhas.

A peça Os filhos da Dita, em rigorosa estrutura épica, expõe aspectos tenebrosos de nossa história recente – a começar pelo golpe de Estado civil-militar de abril de 1964 – com direito a homenagens explícitas a nossos heróis da resistência caídos em combate, como Carlos Marighela.

Do material encontrado pela pesquisa no plano da resistência cultural, os criadores deste trabalho adotaram a música de João Bosco e Aldir Blanc – O bêbado e a equilibrista na sonoplastia e Transversal do tempo na cena – para lhes dar régua e compasso nesta verdadeira operação-resgate da nossa memória: dos feitos truculentos para assegurar a continuidade de nossa condição de quintal do imperialismo à luta contra aquela violência, pelo fim daqueles tempos tenebrosos. Que, entretanto, como indicam os coturnos e a “operação sigilo eterno”, persistem em larga escala.

Como alegoria central, a peça apresenta uma original e muito bem elaborada versão local da mãe Coragem: a nossa Dita, que não hesitou em matar seus filhos, só lamenta que os MORTOS (do passado e do futuro: estes não perdem por esperar) não tenham entendido sua lição de AMOR, empenhada a ponto de usar todas as armas disponíveis, inclusive a tortura, para demonstrá-la.

O espetáculo é teatro com T maiúsculo principalmente porque é LIÇÃO DE HISTÓRIA em linguagem cênica dialética.

Iná Camargo Costa é dramaturgista do grupo Ocamorana

8 comentários:

  1. Parabéns galera. Produzir um espetáculo com um tema pesado desse e receber aplausos com A maiúsculo por um teatro com T maiúsculo não é brincadeira pra qualquer um não. Abraços com A B R A Ç O S maiúsculos.

    ResponderExcluir
  2. Eu estava lá !!! E estarei lá na próxima temporada. Ueba !!!

    Verdade Jurandir,... é para ARLEQUINS !!! Valeu.

    ResponderExcluir
  3. Os velhacos de Brasília que exalam a toxina do "sou invisível" para não serem expostos como fazedores e aspirantes de um país encoberto por uma manta carnavalesca de axés e bundas saradas, escondem cantos dolorosos e estrias.
    E agora essa de sigilo eterno para não ter problemas com os vizinhos.
    Problemas com os vizinhos? Nem vou falar dos do tempo da ditadura, vou citar apenas a Guerra de la Triple Alianza, composta por Brasil, Argentina e Uruguai, de 1864 a 1870, que detonou o Paraguai.
    Indigna mãe.

    ResponderExcluir
  4. Pessoal
    Ter um resultado assim reconhecido com tantas maiúsculas é pq foi merecido. Continuem nesse caminho e que a história faça o seu papel abrangente.
    B E I J O S

    ResponderExcluir
  5. Fico feliz por vocês.

    Agora, me surpreendeu a colocação "... e do futuro: ESSES NÃO PERDEM POR ESPERAR".

    É uma premonição? :(

    ResponderExcluir
  6. Isadora
    É tbm fico pensando nisso
    Como assim não perdemos por esperar?
    Parte do mundo submisso está em luta contra a tirania. Isso é muito relevante como termômetro pra vislumbrarmos o futuro. Como assim então não perdemos por esperar?
    @r@pong@

    ResponderExcluir
  7. Tudo o que é vivo deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o desejo dos homens.

    ResponderExcluir
  8. O bêbado e a equilibrista

    Caía a tarde feito um viaduto (1)
    E um bêbado (2) trajando luto (3) me lembrou Carlitos (4)
    A lua (5) tal qual a dona do bordel (6)
    Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
    E nuvens (9) lá no mata-borrão (10) do céu (11)
    Chupavam manchas (12) torturadas (13), que sufoco louco
    O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil (14)
    Pra noite do Brasil (15), meu Brasil
    Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
    Com tanta gente que partiu (17) num rabo-de-foguete
    Chora a nossa pátria mãe gentil
    Choram Marias e Clarisses (18) no solo do Brasil
    Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
    A esperança dança na corda bamba de sombrinha
    E em cada passo dessa linha pode se machucar
    Azar, a esperança equilibrista (19)
    Sabe que o show de todo artista
    Tem que continuar

    (1) O viaduto da Gameleira, em BH. Obra do governo que desabou sobre carros e ônibus, matando muita gente, porém nada foi noticiado e ninguém foi indenizado.
    (2) O bêbado representa os artistas, poetas, músicos e ‘loucos’ em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.
    (3) Referência aos militantes de esquerda que ‘sumiram’.
    (4) Charles Chaplin.
    (5) A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.
    (6) A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.
    (7) As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.
    (8) O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que ultrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.
    (9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis.
    (10) O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime.
    (11) As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.
    (12) Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma indisciplina.
    (13) Referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.
    (14) Os artistas nunca se calaram. Essa música é uma das irreverências.
    (15) Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite.
    (16) O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.
    (17) Referência aos exilados políticos.
    (18) Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.
    (19) A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares, tinha sua existência ameaçada.

    ResponderExcluir