domingo, 5 de junho de 2011

Quais são as vidas que valem mais?

Bin Laden provocou a morte de cerca de duas mil e seiscentas pessoas nos EUA, audácia que foi punida com seu assassinato. O sérvio Radko Mladic ordenou a morte de oito mil europeus brancos e será julgado no Tribunal Penal Internacional. Bernard Munyagishari, um dos líderes do genocídio de Ruanda (foto), levou a cabo a execução de 800 mil negros africanos, numa das mais tristes tragédias do século XX. De sua captura nem se ouviu falar. Atentados no solo da potência hegemônica, genocídio de brancos na Europa e genocídio de negros na África são crimes muito diferentes? Quais são as vidas que valem mais?

por Larissa Ramina

Por ocasião do assassinato de Bin Laden, muitas declarações de autoridades ao redor do globo atestaram que a justiça fora feita. Evidente inverdade. Não se trata de defender o terrorismo, a Al Qaeda ou o próprio Bin Laden. Por óbvio, ninguém poderá ser insensível à tragédia de 11 de setembro, nem tampouco desejar que os culpados não sejam julgados e condenados. Entretanto, para condenar é necessário julgar.

Não é possível falar em justiça quando um homem é assassinado por um comando em um país estrangeiro ao seu, ainda que seja um terrorista do calibre de Bin Laden. Trata-se da aplicação da Lei de Talião: olho por olho, dente por dente, ou em outras palavras, vingança. Ao contrário da justiça, a vingança não impõe uma investigação que confronte os fatos, a produção de provas, o trabalho de advogados e promotores, com respeito ao princípio da legalidade, da ampla defesa e do contraditório. A vingança não exige uma condenação com circunstâncias atenuantes ou agravantes, e uma pena dela resultante. Assassinar um terrorista não é, portanto, fazer justiça. É assassinato. Podemos ponderar que mesmo o julgamento de Nuremberg seria mais legítimo do que a morte de Bin Laden.

A operação norte-americana que assassinou o terrorista em Abbottabad faz lembrar a tentativa de resgate dos reféns da Embaixada dos EUA em Teerã, por ocasião da Revolução Islâmica comandada pelo Aiatolá Khomeini em 1979. Jimmy Carter, na época, orquestrou uma operação militar audaciosa que foi mal-sucedida, fazendo com que perdesse a reeleição para Ronald Reagan. Provavelmente Obama não amargará sorte semelhante, apesar de ter violado a soberania do Paquistão e princípios fundamentais do direito internacional e dos direitos humanos.

Poucos dias depois da operação em Abbottabad, a Sérvia anunciou a prisão de Radko Mladic, que será levado a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional sediado em Haia. Provavelmente a localização de Bin Laden fez com que a Sérvia, que pretende abrir caminho para uma futura adesão à União Europeia, perdesse argumentos para continuar acobertando o “Açougueiro da Bósnia” ou o “Átila dos Balcãs”.

Mladic é responsabilizado pelo massacre de Srebrenica de julho de 1995, o pior extermínio étnico perpetrado em solo europeu após a 2ª Guerra Mundial. Oito mil homens e meninos bósnios-muçulmanos foram exterminados num campo de refugiados sob proteção de trezentos soldados das Nações Unidas. Falha inexplicável, agravada pela lentidão da reação ocidental, que veio somente após três dias de matança.

Nesse mesmo dia, foi anunciada a prisão no Congo de Bernard Munyagishari, líder da milícia hutu Interahamwe e um dos responsáveis pelo genocídio de Ruanda, em 1994. Na ocasião, oitocentos mil tutsis e hutus moderados foram assassinados, e milhares de mulheres tutsis foram estupradas sob os olhos inertes da comunidade internacional. O acusado será julgado no Tribunal Penal Internacional para a Ruanda, com sede na Tanzânia, mas a notícia não mereceu a devida atenção da mídia ocidental.

Quais são as razões para tratamentos tão diferentes? Bin Laden provocou a morte de cerca de duas mil e seiscentas pessoas em solo norte-americano, audácia que foi punida com seu assassinato. Mladic ordenou a morte de oito mil europeus brancos, será julgado no Tribunal Penal Internacional, e sua captura foi festejada no Ocidente como o fim do isolamento internacional da Sérvia. Munyagishari, um dos líderes do genocídio na Ruanda, levou a cabo a execução de oitocentos mil negros africanos, numa das mais tristes tragédias do século XX. De sua captura nem se ouviu falar. Atentados no solo da potência hegemônica, genocídio de brancos na Europa e genocídio de negros na África são crimes muito diferentes? Quais são as vidas que valem mais?

Larissa Ramina é Doutora em Direito Internacional pela USP, Professora da UniBrasil e do UniCuritiba.

14 comentários:

  1. EUA, o anjo exterminador dos demônios que assombram sua casa e que esbanja esmola ao faminto pra depois o execrar na próxima esquina.

    AFONSO

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  2. Essa foi pesada. Nenhuma vida é contra-peso na balança. Se colocarmos dois seres na balança, sejam eles quem forem, ela ficará equilibrada.

    cidanônima

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  3. “Nenhum, homem é uma ilha isolada. A morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; por isso, não me pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. (Ernest Hemingway)

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  4. O Sonho da igualdade só cresce no terreno do respeito pelas diferenças.

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  5. Nunca viverei este mundo onde todos "valem" igual, mas isso não significa que não luto por isso. Quem sabe o futuro viva e isso é o que importa.

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  6. Boa! Um artigo simples e íntegro. Poucas palavras e no entanto grandiosas. Parabéns aos q tem o poder da síntese e nos tocar.
    Abraços a Larissa e aos Arlequins pela iniciativa d compartilhar este artigo.
    @r@pong@

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  7. O sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico. Estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam? O que dizem quando calam?

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  8. Choro, não porque sofro, choro por não conseguir aliviar plenamente o sofrimento dos que choram porque sofrem.

    Sandra Oliveira

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  9. Perdi o fôlego lendo esse artigo.
    Justiça é feita só quando se mata branco?
    Branco Total
    Nessa Porcaria de mundo?
    Falsos democratas que vestem camisas que estampam em palavras desfocadas pelo uso indevido de alvejantes a palavra IGUALDADE.
    Certas Palavras nunca devem ser lavadas com água sanitária.
    São inócuas na essência.
    Palavras digo: substântivo = gente.
    Tem vezes fico com muita raiva, e isso é muito bom.
    E não é bom bril.

    Argeu

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  10. As razões para tratamentos tão diferentes é o poder de compra do arame farpado para cercar o rebanho. O rebanho cercado por farpas poderosas está protegido pelo dono, alerta a proteger esse arame valioso, não necessariamente o rebanho. Já o de farpas fraquinhas, não tem o que proteger, e isso inclui o rebanho.

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  11. pra q manter vivo esse povo faminto se vão morrer mesmo. eutanásia é o q fez Bernard Munyagishari, ou melhor: um favor.
    HeBoy

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  12. Credo HEBOY.
    Sei que a liberdade de expressão não deve ser podada jamais, mas o custo disso é ter que ouvir barbaridades como essa.
    Fizeram um favor? Ah vá...
    CLEO

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  13. Como vc disse cada um tem o direito de falar o que quer - isso é democracia. FOI UM FAVOR SIM! Livraram eles de morrer como antropófagos, pois um minuto a mais estariam se comendo. Ou pior carniceiros, pois no próximo segundo estariam comendo a carne apodrecida da própria mãe.
    HeBoy

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  14. TERRA:
    É aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada "superstar", cada "lider supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol.

    A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. CARL SEAGAN

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