O delegado era violento. Começava estapeando, depois torturava e, se perdia a paciência, atirava mais de uma vez.
Filho de legista, Fleury cresceu em delegacias. Desde os 17 anos estava na polícia. Fazia parte de uma unidade particularmente agressiva, a Delegacia de Roubos, quando foi “recrutado” pelo regime militar, em junho de 1969. O delegado viria a ser a peça-chave da Operação Bandeirante, a Oban. A missão era estratégica: criar um organismo que reunisse elementos das Forças Armadas, da polícia estadual e da Polícia Federal, para o trabalho específico de combate à subversão. Na prática, o núcleo reuniu os elementos mais radicais, corruptos e violentos dessas organizações. Fleury e sua trajetória são um retrato acabado do que se passou nos porões da ditadura brasileira. Contra o terror, investiu-se no horror.
A repressão não nasceu com o AI-5, mas foi com ele que viveu seu auge. Houve torturas e mortes desde os primeiros anos de governo militar. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), subordinado ao governo estadual, existia desde os anos 20. O Serviço Nacional de Informações foi criado em 1964. A Polícia do Exército torturou logo após o golpe. As manifestações de 1968 foram reprimidas com dureza. Só que o AI-5 foi entendido como licença para matar e, de fato, quem matou em nome do combate à subversão não foi incomodado nos anos seguintes.
Dizer que a máquina repressiva se organizou após 1968 é uma imprecisão por conta disso. E também porque a desorganização era o fundamento da lógica da repressão. O capitão torturador passava por cima do major, o delegado trabalhava contra o governador. Nesse sentido, a repressão subvertia a ordem mais do que os guerrilheiros. Isso não quer dizer que não houvesse cadeias de comando, mas que os porões criaram sua própria hierarquia – clandestina, com ramificações nos altos escalões e, no mínimo, sua conivência.
Fleury, por exemplo, teve plenos poderes ao chefiar a Oban. Quando se instalara no Dops, já levara com ele todo seu “Esquadrão da Morte”, um grupo de policiais envolvidos em esquemas de corrupção, proteção a traficantes, desvio de contrabandos. Um deles, conhecido como Fininho, carregava no chaveiro, como amuleto, a língua de um dedo-duro que metralhou. “Os comandantes militares sabiam que tinham colocado um delinqüente na engrenagem policial do regime”, diz Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada, referindo-se a Sérgio Paranhos Fleury.
Quando o delegado esteve em alta, unidades policiais enviavam suspeitos para sua base, uma delegacia na rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Atrás daquelas paredes, os presos viviam o inferno. As sessões de tortura desse período estão entre as piores de que se tem notícia, repletas de choques elétricos, afogamentos, palmatórias, queimaduras, espancamentos em pau-de-arara e estupros individuais e coletivos. Algumas vítimas se suicidaram anos depois. A influência do delegado ia além dos limites do estado. Em 1969, Fleury matou Carlos Marighella com ajuda do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que deteve no Rio padres que tinham ligações com o guerrilheiro e os ofereceu à tortura do delegado.
Nos quartéis, também ocorriam maus-tratos e mortes. Houve aulas de tortura, ministradas por oficiais. Os que se destacavam na repressão recebiam medalha cujo título seria irônico, não fosse o contexto macabro: Ordem do Grande Pacificador. Fleury recebeu a sua em 1971. Henning Boilesen, presidente da Ultragás que foi morto pela esquerda, também ganhou uma.
Para os altos escalões da República, a tortura tinha dois resultados práticos: obter informações sobre as atividades clandestinas da esquerda e exterminar seus participantes. O primeiro era visto como uma necessidade. O segundo, como acidente de trabalho. Mas é difícil acreditar que a morte da vítima fosse indesejada quando se olha a extensão dos ferimentos de alguns presos. Chael Charles Schreier, estudante de medicina que pertencia à VAR-Palmares e foi morto em 1969, tinha mais de 50 machucados. Seu queixo exibia um corte com cinco pontos. A cabeça sofrera hemorragia e havia sangue “em todos os espaços” do abdômen. O intestino fora rompido e dez costelas estavam quebradas, segundo relato de Elio Gaspari, que examinou a necropsia de Schreier e a qualifica como “a mais detalhada do regime”.
Fleury se destacou tanto em obter informações quanto em matar os esquerdistas – Marighella era seu maior troféu. A ofensiva de que participou em 1969 colocou a luta armada contra a parede e dizimou os guerrilheiros. Para isso, contou com um passo em falso dado pela esquerda no início do ano. Até 1968, o Exército se ressentia da falta de informação e fora surpreendido seguidamente por ações da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Empolgada pelo sucesso de seus atentados, roubos a banco e justiçamentos, a VPR planejou atacar o Palácio do Governo paulista e o quartel do 2º Exército. Para isso, esperava a deserção de Carlos Lamarca, campeão nacional de tiro e capitão respeitado no 4º Regimento de Infantaria. Ele iria tomar seu quartel e fugir com 560 fuzis e dois morteiros. Mas o plano é descoberto, seus participantes são presos e Lamarca foge às pressas do quartel com 63 fuzis e uma Kombi – o ex-capitão morreria em 1971.
Após interrogatórios e torturas, os presos deram ao Exército um grande trunfo: conhecer a estrutura da VPR. Era a primeira vez que isso acontecia. Em pouco tempo, ocorreram dezenas de prisões e a organização foi desarticulada. Os presos levaram a integrantes de outras siglas. O Grupo Tático da ALN caiu, com alguns dos militantes cercados pessoalmente por Fleury. Em Belo Horizonte, o Colina foi destroçado. No Rio, o MR-8 se desfez como pó.
Repressão vira o jogo
A repressão virou o jogo com menos de dois meses de AI-5. Passou à ofensiva e aperfeiçoou suas engrenagens. Cada Arma tinha um centro de informações que, a exemplo do Cenimar, ia a campo contra a subversão. Os Dops se ligaram à estrutura militar pela Oban, iniciada em São Paulo e exportada a outros estados. Em 1970, a Oban integrou-se aos DOIs e aos Codis, que eram regionais e pertenciam ao Exército. Cada órgão tinha agentes que seguiam pessoas, grampeavam telefones, analisavam interrogatórios e recolhiam boatos para “fichar” suspeitos. A repressão compôs dossiês de pelo menos 60 mil nomes. Todos os órgãos caçavam subversivos. Prender mais, matar mais, era motivo de disputa e status.
Essa estrutura precisava de dinheiro. Dados do Projeto Brasil: Nunca Mais indicam que a Oban receberia verbas até de multinacionais, como Ford e General Motors. “Na Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe”, relata Gaspari.
No início da década de 70, a repressão exterminava "terroristas" e, ao mesmo tempo, ampliava seus alvos – uma forma de justificar sua própria existência. Gente sem vínculo com a guerrilha virou “suspeita de subversão” e foi tratada como “inimiga”. A cúpula do regime aplaudia, a julgar pela Lei Fleury, de 1973, feita para beneficiar o delegado, ao permitir que réus primários aguardassem julgamento em liberdade.
A repressão só iria se modificar em 1974. Pressões da sociedade e a desordem que os porões criaram na própria estrutura militar contribuíram para isso. Fleury então vira motivo de preocupação para o general Ernesto Geisel, ainda antes da posse. “É um bandidaço sem-vergonha”, definiu o general Golbery do Couto e Silva em conversa com o futuro presidente. Desvalorizada, a face mais cruel do regime mergulha na clandestinidade, onde se prolongaria até os anos 80, com ataques a jornais da imprensa alternativa e à Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.
Fleury morreu em maio de 1979, por suposto afogamento, após cair de seu iate, em Ilhabela (SP). O comando da polícia paulista impediu que fosse feita autópsia no corpo.
Dizer que a máquina repressiva se organizou após 1968 é uma imprecisão por conta disso. E também porque a desorganização era o fundamento da lógica da repressão. O capitão torturador passava por cima do major, o delegado trabalhava contra o governador. Nesse sentido, a repressão subvertia a ordem mais do que os guerrilheiros. Isso não quer dizer que não houvesse cadeias de comando, mas que os porões criaram sua própria hierarquia – clandestina, com ramificações nos altos escalões e, no mínimo, sua conivência.
Fleury, por exemplo, teve plenos poderes ao chefiar a Oban. Quando se instalara no Dops, já levara com ele todo seu “Esquadrão da Morte”, um grupo de policiais envolvidos em esquemas de corrupção, proteção a traficantes, desvio de contrabandos. Um deles, conhecido como Fininho, carregava no chaveiro, como amuleto, a língua de um dedo-duro que metralhou. “Os comandantes militares sabiam que tinham colocado um delinqüente na engrenagem policial do regime”, diz Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada, referindo-se a Sérgio Paranhos Fleury.
Quando o delegado esteve em alta, unidades policiais enviavam suspeitos para sua base, uma delegacia na rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Atrás daquelas paredes, os presos viviam o inferno. As sessões de tortura desse período estão entre as piores de que se tem notícia, repletas de choques elétricos, afogamentos, palmatórias, queimaduras, espancamentos em pau-de-arara e estupros individuais e coletivos. Algumas vítimas se suicidaram anos depois. A influência do delegado ia além dos limites do estado. Em 1969, Fleury matou Carlos Marighella com ajuda do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que deteve no Rio padres que tinham ligações com o guerrilheiro e os ofereceu à tortura do delegado.
Nos quartéis, também ocorriam maus-tratos e mortes. Houve aulas de tortura, ministradas por oficiais. Os que se destacavam na repressão recebiam medalha cujo título seria irônico, não fosse o contexto macabro: Ordem do Grande Pacificador. Fleury recebeu a sua em 1971. Henning Boilesen, presidente da Ultragás que foi morto pela esquerda, também ganhou uma.
Para os altos escalões da República, a tortura tinha dois resultados práticos: obter informações sobre as atividades clandestinas da esquerda e exterminar seus participantes. O primeiro era visto como uma necessidade. O segundo, como acidente de trabalho. Mas é difícil acreditar que a morte da vítima fosse indesejada quando se olha a extensão dos ferimentos de alguns presos. Chael Charles Schreier, estudante de medicina que pertencia à VAR-Palmares e foi morto em 1969, tinha mais de 50 machucados. Seu queixo exibia um corte com cinco pontos. A cabeça sofrera hemorragia e havia sangue “em todos os espaços” do abdômen. O intestino fora rompido e dez costelas estavam quebradas, segundo relato de Elio Gaspari, que examinou a necropsia de Schreier e a qualifica como “a mais detalhada do regime”.
Fleury se destacou tanto em obter informações quanto em matar os esquerdistas – Marighella era seu maior troféu. A ofensiva de que participou em 1969 colocou a luta armada contra a parede e dizimou os guerrilheiros. Para isso, contou com um passo em falso dado pela esquerda no início do ano. Até 1968, o Exército se ressentia da falta de informação e fora surpreendido seguidamente por ações da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Empolgada pelo sucesso de seus atentados, roubos a banco e justiçamentos, a VPR planejou atacar o Palácio do Governo paulista e o quartel do 2º Exército. Para isso, esperava a deserção de Carlos Lamarca, campeão nacional de tiro e capitão respeitado no 4º Regimento de Infantaria. Ele iria tomar seu quartel e fugir com 560 fuzis e dois morteiros. Mas o plano é descoberto, seus participantes são presos e Lamarca foge às pressas do quartel com 63 fuzis e uma Kombi – o ex-capitão morreria em 1971.
Após interrogatórios e torturas, os presos deram ao Exército um grande trunfo: conhecer a estrutura da VPR. Era a primeira vez que isso acontecia. Em pouco tempo, ocorreram dezenas de prisões e a organização foi desarticulada. Os presos levaram a integrantes de outras siglas. O Grupo Tático da ALN caiu, com alguns dos militantes cercados pessoalmente por Fleury. Em Belo Horizonte, o Colina foi destroçado. No Rio, o MR-8 se desfez como pó.
Repressão vira o jogo
A repressão virou o jogo com menos de dois meses de AI-5. Passou à ofensiva e aperfeiçoou suas engrenagens. Cada Arma tinha um centro de informações que, a exemplo do Cenimar, ia a campo contra a subversão. Os Dops se ligaram à estrutura militar pela Oban, iniciada em São Paulo e exportada a outros estados. Em 1970, a Oban integrou-se aos DOIs e aos Codis, que eram regionais e pertenciam ao Exército. Cada órgão tinha agentes que seguiam pessoas, grampeavam telefones, analisavam interrogatórios e recolhiam boatos para “fichar” suspeitos. A repressão compôs dossiês de pelo menos 60 mil nomes. Todos os órgãos caçavam subversivos. Prender mais, matar mais, era motivo de disputa e status.
Essa estrutura precisava de dinheiro. Dados do Projeto Brasil: Nunca Mais indicam que a Oban receberia verbas até de multinacionais, como Ford e General Motors. “Na Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe”, relata Gaspari.
No início da década de 70, a repressão exterminava "terroristas" e, ao mesmo tempo, ampliava seus alvos – uma forma de justificar sua própria existência. Gente sem vínculo com a guerrilha virou “suspeita de subversão” e foi tratada como “inimiga”. A cúpula do regime aplaudia, a julgar pela Lei Fleury, de 1973, feita para beneficiar o delegado, ao permitir que réus primários aguardassem julgamento em liberdade.
A repressão só iria se modificar em 1974. Pressões da sociedade e a desordem que os porões criaram na própria estrutura militar contribuíram para isso. Fleury então vira motivo de preocupação para o general Ernesto Geisel, ainda antes da posse. “É um bandidaço sem-vergonha”, definiu o general Golbery do Couto e Silva em conversa com o futuro presidente. Desvalorizada, a face mais cruel do regime mergulha na clandestinidade, onde se prolongaria até os anos 80, com ataques a jornais da imprensa alternativa e à Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.
Fleury morreu em maio de 1979, por suposto afogamento, após cair de seu iate, em Ilhabela (SP). O comando da polícia paulista impediu que fosse feita autópsia no corpo.
texto de Alessandro Meiguins
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Como funcionavam os porões
As estratégias dos agentes que torturavam e matavam
Captura
Ao descobrir a localização de um suspeito, a polícia o prendia no esconderijo ou na rua. Mas houve gente que foi solta legalmente para depois “sumir” ilegalmente
Laudo falso
Médicos compactuaram com as torturas, forjando autópsias para vítimas que haviam morrido ou mantendo o preso em condições de falar durante interrogatórios
Maus-tratos na cela
Choques elétricos e o pau-de- arara foram dois dos métodos mais usados pelos torturadores, que, quando agiam em delegacias, usavam os gritos das vítimas para aterrorizar os demais prisioneiros
Grampeado
Agentes montavam dossiês sobre suspeitos, acompanhando suas atividades e conversas telefônicas, por meio de escuta ilegal. Todas as Forças tinham setor de informações
Aulas de tortura
Nos quartéis, houve casos isolados de aulas de tortura, ministradas por oficiais diante de platéias de dezenas de militares. Os presos eram tirados da celas e supliciados “ao vivo” para ajudar nas explicações
Métodos radicais
Espancamentos, palmatória e afogamentos também foram técnicas usadas nos maus-tratos. Contra mulheres, houve estupros individuais e coletivos.
Desova
Quando ocorria um “acidente de trabalho”, com a morte do preso, eram montadas falsas versões de tiroteio, cenas de suicídio ou o corpo era enterrado como indigente
Medalha
Militares e civis ganhavam medalha por serviços prestados à repressão. Fleury ganhou a sua. O nome parecia ironia: Ordem do Pacificador.
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"Os fantasmas me apavoram"
depoimento de militante da ALN que foi torturada
“Quando a polícia chegou, meu bebê tinha 33 dias. Parto complicado, fiquei 20 dias internada. Eu mesma abri a porta quando tocou a campainha. Era o delegado Fleury, com outros dez policiais. Queriam levar eu e meu marido e deixar meu filho no Juizado de Menores - Terrorista não tem família, não tem que ter filho -, ele falava. Enlouqueci. Gritei tanto que concordaram em deixar o bebê com meus sogros. Na prisão, apanhei muito. Meu leite saía sem querer e se misturava ao sangue. Deram uma injeção para parar. Esperneei, tentei fugir. Enfiaram a agulha na minha coxa. Perdi o leite e a capacidade de ter filhos. Eles me achavam bonita e faziam o que bem queriam de mim. Tinha o delegado Ivair, gordo e grisalho. Gostava de ‘brincar’. Mostrava um revólver dourado, que tinha balas ‘cor-de-rosa’, dizia que só usava para matar mulher. Foram nove meses de prisão, 50 dias seguidos sem tomar banho. Esses fantasmas me apavoram ainda hoje. Eu me agarro à vida e sigo em frente. Sei que, por pior que seja, vale a pena viver.”
Rose Nogueira, presa em novembro de 1969, militava na ALN falsificando documentos, arrumando esconderijos e dando abrigo ao guerrilheiro Carlos Marighella. Hoje preside o grupo Tortura Nunca Mais-SP .
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Túmulo de Marighella em Salvador
“Não tive tempo para ter medo”. A frase gravada na lápide de mármore desenhada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e que está exposta no túmulo de Carlos Marighella, no Cemitério Quinta dos Lázaros, resume a trajetória de luta e ideal libertário do líder comunista baiano assassinado no dia 4 de novembro de 1969, em São Paulo, numa emboscada das forças repressoras do regime militar. A figura humana em posição de luta e cinco projéteis de escopeta cravados na altura do peito – formando a constelação Cruzeiro do Sul, que também consta no centro da bandeira brasileira – completam a criação que denuncia a perseguição aos que lutaram contra a ditadura militar em defesa da democracia.
Marighella foi surpreendido por uma operação comandada pelo então delegado do Dops (Departamento de Ordem e Política Social) Sérgio Paranhos Fleury – conhecido pela crueldade com que perseguia opositores do regime militar.
Hoje, essa obra do arquiteto Oscar Niemeyer, comunista e igualmente perseguido pelos militares, está quase desfigurada por pichações.
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Memória
O advogado e ex-deputado estadual Carlos Marighella Filho, que só aos 8 anos de idade conheceu o pai, forçado que foi a viver na clandestinidade, o define como uma pessoa “desassombrada” e de “ação”, características que o próprio Marighella revelou ao dizer, numa entrevista concedida em 1968, que não teve tempo para ter medo. Comunista como o pai e também vítima da repressão – foi torturado pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e condenado com 14 comunistas baianos pela Lei de Segurança Nacional –, Marighella Filho revisita a memória e fala do pai, que se tornou militante do PC aos 18 anos e fez da poesia a arma de luta pela liberdade.
A primeira prisão de Marighella foi consequência de um poema tecendo críticas ao interventor da Bahia, general Juracy Magalhães, em 1932. Obrigado a interromper os estudos por conta da militância, vai para o Rio de Janeiro. Em 1936, é preso novamente, depois passa seis anos no presídio de Fernado de Noronha. Marighella Filho lembra que um jornal da época, estampando a foto do pai com um outro comunista, ambos com hematomas no rosto, trazia a seguinte manchete: “Em nome da boa profilaxia social, a polícia do Rio de Janeiro acaba de prender dois homens afetados de comunismo”. “Toda aquela violência contra um poeta era justificada, como se fosse uma doença contagiosa”, lamenta o filho sobre o pai.
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Carlos Marighella, poeta desde o ginásio na Bahia
No Ginásio da Bahia ficaria notória a prova de Física que o estudante Carlos Marighella respondeu em 40 versos, cujo tema era “Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos, construções de imagens e equações catóptricas”. Cursava, então, o 5º ano do Ginásio da Bahia, em 23 de agosto de 1929, aos dezoito anos. O tema da prova fora sorteado na sala de aula, antes do exame, um detalhe pouco conhecido. Marighella assim respondeu:
Doutor, a sério falo, me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz,
Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar
Dois casos, quando a imagem se formar.
Caso primeiro: um ponto é que se tem;
Ao segundo um objeto é que convém.
Seja a figura abaixo que se vê,
o espelho seja a linha betacê.
O ponto P um ponto dado seja,
Como raio incidente R se veja.
O raio refletido vem depois
E o raio luminoso ao ponto 2.
Foi traçada em seguida uma normal
o ângulo I de incidência a R igual
Olhando em direção de R segundo,
A imagem vê-se nítida no fundo,
No prolongado, luminoso raio,
Que o refletido encontra de soslaio.
Dois triângulos então o espelho faz,
Retângulos os dois, ambos iguais.
Iguais porque um cateto têm comum,
Dois ângulos iguais formando um.
Iguais também, porque seus complementos
Iguais serão, conforme uns argumentos.
Quanto a graus, A+I possui noventa,
B+J outros tantos apresenta.
Por vértice opostos R e J
São iguas assim como R e I.
Mostrado e demonstrado o que é mister,
I é igual a J como se quer.
Os triângulos iguais viram-se acima,
L2, P2, iguais, isto se exprima.
Imagem de um ponto
Atrás do espelho plano então se forma
A imagem, que é simétrica por norma.
Imagem de um objeto
Simétrica, direita e virtual,
E da mesma grandeza por final.
Melhor explicação ou mais segura
Encontra-se debaixo na figura.
A prova em versos rendeu a Marighella nota dez e ficou exposta no corredor do colégio até 1965, protegida por uma moldura envidraçada, como exemplo para os demais estudantes. O Ginásio da Bahia ficava no Bairro de Nazaré, hoje Colégio Central.
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Carlos Lamarca, um militar brasileiro, que desertou do exército durante o regime militar e se tornou um guerrilheiro comunista.
Como guerrilheiro, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, foi um dos principais opositores ao regime militar, visando à implantação de um regime socialista no Brasil. Devido a isto, foi condenado por "traição e deserção" pelo Exército Brasileiro. É o único homem na História do Brasil a receber o status de traidor da nação por ter combatido o regime militar, instaurado no Brasil desde 1964. Por outro lado, assim como Onofre Pinto que também abandonou o exército para lutar contra o regime, é considerado pela esquerda um importante revolucionário brasileiro.
Trinta e seis anos após a morte de Lamarca, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça sob supervisão do Ministro da Justiça Tarso Genro dedicou sua sessão inaugural a promovê-lo a Coronel do Exército e a reconhecer a condição de perseguidos políticos de sua viúva e filhos.
Se contra a pátria não há direitos porque Fleury e tantos outros sujaram o Brasil? Só se para eles, que se achavam os donos da cocada, esse lema não servia. Ainda bem que esse se foi. Foi julgado e condenado a morte, provavelmente por seus próprios "camaradas". Faltam alguns ainda, que lamento vão morrer de velhos, enfartados, sem jamais serem julgados.
ResponderExcluirAlessandro Couto
Golbery do Couto e Silva, preocupado (tadinho) com os destemperos de Fleury, classificando-o de um bandidaço sem-vergonha, demonstra bem o quanto nem eles, que promoveram a repressão, entendiam o que estavam reservando para o Brasil. Um bando de nefastos querendo por ordem numa situação toda embaraçada e fora da lei que eles mesmos criaram. Realmente o Brasil viveu um horror nas mãos dessas criaturas.
ResponderExcluirUi... Muito boa postagem. Esclarecedora e pertinente. A citação "a desorganização era o fundamento da lógica da repressão" exprime bem com quem estávamos lidando nessa época. Pena que muitos pagaram o preço dessa desorganização com a própria vida.
ResponderExcluirA afirmação - Contra o terror, investiu-se no horror - não me parece coerente. A repressão espalhou o terror e o horror simultaneamente.
ResponderExcluirAntonio Carlos Diaz
Diaz, no meu ver, acho que o autor se refere a terror de terrorista, expressão utilizada pela repressão aos que contra ela lutavam. Assim sendo a afirmação está correta.
ResponderExcluirMuito bom o artigo. Completo na análise sem deixar arestas que precisamos buscar compreensão em outras fontes. Valeu.
PHF
O comando da polícia paulista impediu que fosse feita autópsia no corpo de Fleury não porque revelaria que não foi bem de afogamento que o cara morreu, mas porque não conseguiriam com nenhum bisturi, feito do material mais resistente desse mundo, cortar aquela couraça dura e impenetrável.
ResponderExcluirSe, segundo Fleury, terrorista não tem família, não tem que ter filho, porque ele teve?
ResponderExcluirPor terrorista entendo quem espalha o terror e isso ele soube fazer direitinho.
Esses dias mesmo estava lendo uma matéria que dizia: Todas as semanas, a viúva de Fleury, Maria Izabel, manda depositar flores no túmulo do marido, no Cemitério São Paulo, onde jazem as respostas aos pontos de interrogação que cercam aquele mergulho no mar de Ilhabela em 1979. Em casa, guarda recordações do delegado, encadernadas com uma identificação: "Fleury, o imortal".
Gente, vocês já pensaram na possibilidade dela estar certa e o famigerado Fleury estar por aqui entre a gente vivinho vivinho !!! Vá de retro satanas !!!
A atitude do Lamarca, um militar que desertou do exército durante o regime militar para se tornar um guerrilheiro, até me deixa com a impressão de que existem milicos que sabem usar seus neurônios.
ResponderExcluirEsse tempo de repressão, sem dúvida, pesado demais, que expressa o quanto o ser humano é capaz de ser sombrio e desgraçar uma nação, cujo horror agora, mais do que antes, está sendo discutido, é indelével, mas deve ser mostrado até que entendamos inteiramente o que aconteceu.
ResponderExcluirEu, até me considero entendida, mas tem tantos pontos obscuros nessa história que até acho que pouco sei. O importante é que todos saibam em que cultura fomos gerados. Quem são os que antes de 8 de fevereiro de 2011 eram responsáveis a por ordem nesse país.
A dor sentida na pele e os gritos dos que não aceitavam essa condição extravasam até hoje os limites do passado. Por isso esta história precisa ser contada sem medo de ter a lingua num chaveiro de um assassino infeliz. Sei que esta história só poderá ser contada, na sua essência mais aromática, pelos que fazem arte. Como sempre foi e assim será nesse mundo de tantos medos e tetos de vidro e pactos e rendições.
A arte é livre. Mesmo que censurada ela dá um jeito de se mostrar.
assisti o filme batismo de sangue q mostrou bem quem e fleury e toda engrenagem de bandidos q ele comandava. um horror mesmo. bom o artigo publicado. so nao ve quem sao os bandidos dessa estoria quem nao quer.
ResponderExcluirSOD+
Sei que já falei demais por aqui... hehehehe... mas acho que vcs realçaram algumas citações que tinham me passado despercebidas e, como sou assíduo voltei, e só agora me dei conta da grandeza da sacação do "jornalista" que escreveu - "Em nome da boa profilaxia social, a polícia do Rio de Janeiro acaba de prender dois homens afetados de comunismo".
ResponderExcluirAgora vou dormir em paz pois com essa frase finalizo mais um epsódio de minhas tantas inquietações, dentre tantas, a com relação à saúde pública. Pois pessoas afetadas pelo comunismo devem recorrer à rede de saúde para deter a profilaxia que pode contaminar o social.
Vou dormir em paz... hehehehehe... já que o sistema de saúde no brasil não funciona mesmo.
Boa noite galera.
Lamarca, o seu próprio nome já diz tudo.
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