A argentina Cecília Boal está decidida: até o fim do ano, parte do acervo de seu marido, o diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta carioca Augusto Boal, que fundou o Teatro do Oprimido, foi eleito embaixador mundial da Unesco e morreu de leucemia em maio de 2009, migra para os Estados Unidos, sob a tutela da New York University (NYU). Segundo a psicanalista, que foi casada por 40 anos com o diretor que uniu teatro e ação social, trata-se da única saída possível ante a deterioração do material.
- Não recrimino, nem me queixo do Brasil - diz Cecília, diante de uma pilha de pastas coloridas etiquetadas como "correspondências de Augusto".
- Mas este país é jovem e, apesar de estar progredindo, ainda não tem interesse em cultivar a memória de seus ícones. Em outros lugares do mundo, como nos Estados Unidos, o dinheiro destinado à cultura é bem maior, e fica tudo mais fácil.
Com a ajuda de amigos, Cecília descobriu recentemente que gastaria aproximadamente US$ 500 mil se quisesse limpar, catalogar e digitalizar no Rio os 20 mil textos, 300 horas de vídeo, 120 horas de áudio, 2 mil fotografias, 120 cromos e diversos desenhos (sim, Boal desenhava!) que o marido arquivou. Decidiu sair em busca de ajuda, mas não obteve sucesso em lugar algum. Visitou as secretarias municipal e estadual de Cultura do Rio e, apesar de bem recebida, ouviu queixas de que a verba pública é sempre diminuta, insuficiente para a obra de Boal.
- Até me disseram que poderiam me ceder uma casa, mas que o espaço precisava de obras e que isso correria por minha conta. Não dava - lembra a viúva.
Cecília recorreu, então, à iniciativa privada. Esteve no Instituto Moreira Salles e se deu conta de que o volume de documentos do marido, que compulsivamente guardou os originais de todas as suas peças, os programas, os cartazes, as traduções, os prêmios, os artigos de jornal e as teses escritas sobre ele, tornava tudo ainda mais complicado.
Foi aí que recebeu um telefonema da New York University e resolveu: em agosto, abrirá, para uma dupla de funcionários da universidade americana, as portas de seu apartamento, no Arpoador, e do quartinho refrigerado que aluga em Botafogo.
Os dois especialistas irão garimpar entre caixas, pastas e prateleiras todas as preciosidades criativas do ensaísta, que teve obras traduzidas para mais de 70 línguas, além de ter sido indicado ao Nobel da Paz em 2008.
- Os cassetes, as fitas em VHS, os DVDs e todas as outras coisas gravadas serão arquivados com a ajuda de uma tecnologia da NASA que capta os sinais das reproduções e os guarda por cerca de 500 anos - conta Cecília, afundada no sofá de sua sala.
- Já os cadernos, roteiros, fotos, objetos e cartas ficarão numa sala que poderá ser visitada gratuitamente por quem agendar hora. A universidade também me prometeu criar um portal trilíngue na internet só para abrigar o acervo do Augusto. Entrar na internet é a melhor forma de manter a obra dele viva.
A princípio, a parceria com a NYU pode parecer estranha, mas, durante quatro décadas, o dramaturgo carioca frequentou a escola, dando aulas extracurriculares e recebendo no Rio alunos interessados em aprofundar suas técnicas. Eram, ao menos, 25 todos os anos, lembra Cecília
- Então me pareceu lógico entregar esse acervo à NYU - defende a psicanalista. - Não tenho mais idade para esperar uma solução por aqui, e o material está visivelmente se deteriorando. É muita maresia e muita umidade no Rio de Janeiro.
Na coleção de Boal está a fita cassete original de "Meu caro amigo", que Chico Buarque e Francis Hime lhe enviaram quando ele estava exilado em Portugal. Estão também uma foto do dramaturgo com Maria Bethânia na época do show "Opinião" e cartas redigidas por Fernanda Montenegro e pelo escritor argentino Julio Cortázar, além de diversos textos ainda inéditos. Quando entra no escritório de sua casa, de onde se ouvem as ondas do mar, Cecília zanza, confusa, entre caixas e pastas. Não sabe mais ao certo onde cada coisa foi parar.
Desde a morte de Boal, o arquivo cruzou a cidade algumas vezes. Em 2009, seguindo a sugestão do professor de teatro Zeca Ligiéro, Cecília levou toda a produção do marido para a biblioteca da Universidade Federal do Estado do Rio (UniRio). Durante mais de 12 meses, esperou que a ala especial prometida para abrigar e expor o acervo saísse do papel. Mas, obedecendo à morosidade do serviço público, a construção não decolou, e Cecília achou melhor retomar o arquivo para si.
No ano passado, por alguns meses, toda a produção intelectual de Boal ficou hospedada na Fundação Darcy Ribeiro, mas, no início deste ano, Cecília decidiu que o melhor seria desembolsar R$ 1.200 por mês e alugar um quartinho em Botafogo para que ela própria cuidasse do acervo. Pôs um ar-refrigerado, e metade das caixas não coube - indo parar em sua casa. A convivência com a desordem foi o empurrão que faltava para que Cecília entabulasse negociações definitivas com os americanos.
- A universidade lamenta que as obras de Boal terminem fora do país - diz Márcia Valéria Costa, diretora da biblioteca central da UniRio. - Não tivemos como atender a família na velocidade que ela queria, mas a ampliação de nossas instalações está prevista para acabar em 2012. Ainda temos interesse em manter o trabalho de Boal no Rio.
Cecília, no entanto, parece ter perdido a fé no serviço público brasileiro. Classifica como "irrecusável" a oferta dos americanos. Em troca do envio do acervo para os Estados Unidos, Cecília quer que a NYU colabore financeiramente para que o Instituto Augusto Boal, que já tem CNPJ, ganhe vida.
Publicado originalmente em oglobo
Pobre do país que não respeita seus filhos. Deixar o acervo do Boal sair do Brasil é o mesmo que deserdar um filho. Pior, um filho perfeito e merecedor desse lar.
ResponderExcluirTriste mesmo ver como a cultura é tocada pela banda tupiniquim nesse total descompasso.
ResponderExcluirFalta de $$$$$$ para preservar nossa memória? Essa não colou.
ResponderExcluirBeto
Pouco a pouco nossa memória, que é nossa maior riqueza, se esvai. + ou - como quando foram saqueadas obras e riquezas no tempo da colonização. A diferença é que agora ninguém precisa tirar a força, o próprio país se encarrega de entregá-la.
ResponderExcluirFalar desse assunto basta uma poesia
ResponderExcluirMemória, de Carlos Drummond
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Deixar Boal sair do Brasil é um ato extremo mas necessário. Quase um ato de admiração. Pois por aqui está sendo construído um cemitério estranho, sem conforto, onde vermes aos mil, remorsos doloridos, atacam de preferência meus mortos mais queridos.
ResponderExcluirDedico esse poema ao ilustre Augusto Boal que viveu intensamente esse mundo repartido.
ResponderExcluirHerói Vencido Naquele dia
Parti
A hora em que a cidade era saudosa
Das vidas que eu viveria
Se me não fora impossível.
Ali,
Tudo me prometia
O perdido para sempre,
E tudo me era sensível,
Como se fosse de novo,
Ou eu visse
Com os olhos da outra gente.
Nesse momento,
De mim próprio tão diferente,
Era o herói conhecido
De um romance concebido
E nunca realizado...
No ar da gare,
Entre o silvo das partidas,
Estava suspenso, parado,
O perfume concentrado
De todas as despedidas.
Francisco Bugalho, in "Canções de Entre Céu e Terra"
Um país que desdenha sua cultura está falido a viver entre migalhas estrangeiras. Viva o funk americano.
ResponderExcluirFalou Jura
ResponderExcluirInfelizmente esse descaso com a cultura ainda acontece no Brasil. Bem, se é para assegurar a vida da obra de Augusto Boal que esteja em qualquer lugar, mesmo porque aqui esse acervo ficaria ao relento do esquecimento e do silêncio que impera nossa falida cultura.
Ainda em tempo...
ResponderExcluir"O Movimento dos Trabalhadores de Cultura marcou para a próxima segunda-feira, 25 de julho, “grande manifestação” de artistas de teatro, música, dança, circo e culturas populares contra o corte de orçamento sofrido pelo Ministério da Cultura em 2011 e suas conseqüências para a produção cultural brasileira.
A manifestação será na Rua Apa, à altura do número 83, no bairro de Santa Cecília, São Paulo, próximo à Funarte-SP, a partir das 14h."
É uma forma de dizer não a esse descaso com nossa cultura. Certo?!
E vai piorar.
ResponderExcluirNo Planejamento a proposta para o Orçamento de 2012 diz que a tesoura da Ministra Miriam Belchior deve cortar uns R$ 500 milhões da Cultura na comparação com 2010.
Deu no Ancelmo Gois, hoje (25/7 - pág 12 de O Globo)