segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O 1848 árabe: os déspotas cambaleiam e caem

por Tariq Ali

Não pode durar muito mais porque os militares declararam que não dispararão contra seu próprio povo, o que exclui a opção da praça de Tiananmen. Se os generais (que sustentam este regime há muito tempo) faltarem com sua palavra podem dividir o exército e preparar o terreno para a guerra civil. Ninguém quer isso, nem os israelenses, que gostariam que seus amigos estadunidenses mantivessem o seu homem chave no Cairo tanto tempo que fosse possível. Mas isso também é impossível.

Washington quer uma “transição ordenada”, mas as mãos de Suleiman o Fantasma (ou o Senhor da Tortura como algumas de suas vítimas o chamam), que empurraram goela abaixo de Mubarak, também estão manchadas de sangue. Substituir um torturador por outro já não é aceitável. As massas egípcias querem uma mudança total do regime, não uma operação ao estilo do Paquistão, onde um civil sem vergonha substitui a um ditador uniformizado e nada muda verdadeiramente.


Uma onda de levantamentos nacional-democráticos

A infecção tunisiana se expandiu muito mais rapidamente do que se poderia imaginar. Após uma longa letargia induzida por derrotas (militares, políticas e morais) a nação árabe está despertando, A Tunísia impactou imediatamente a vizinha Argélia e esse estado de ânimo cruzou então o Jordão e chegou ao Cairo uma semana depois. Estamos sendo testemunhas de uma onda de levantamentos nacional-democráticos que lembram mais as agitações de 1848 - contra o Czar, o Imperador e seus colaboradores – que varreram a Europa e foram presságios de posteriores turbulências. Este é o 1848 árabe. O Czar-Imperador de hoje é o presidente da Casa Branca. Isso é o que diferencia estas proto-revoluções dos assuntos de 1989: isso e o fato de que, com poucas exceções, as massas não se mobilizaram elas mesmas no mesmo grau. Os europeus do leste se submeteram aos ocidentais, vendo nisso um futuro feliz e entoaram “Tomem-nos, tomem-nos, já somos vossos”.

As massas árabes querem romper com o horrível abraço. Os Estados Unidos e a União Europeia têm dado seu apoio a ditadores dos quais (as massas árabes) querem se livrar. São revoltas contra o universo da miséria permanente: uma elite cega por sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura e subjugação ao Ocidente. O redescobrimento da solidariedade árabe contra as ditaduras repelentes e os que as sustentam é um novo ponto de inflexão no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória histórica da nação árabe que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de 1967. Neste aspecto, o contraste não pode ser mais vivo. Gamal Abdel Nasser, apesar de seus erros e debilidades, viu a derrota de 1967 como algo sobre o qual teve que assumir sua responsabilidade. Renunciou. Mais de um milhão de egípcios se reuniram no coração do Cairo para pedir que ele ficasse no poder. E ele mudou de opinião. Morreu no cargo poucos anos depois, com o coração dilacerado e sem dinheiro. Seus sucessores entregaram o país a Washington e a Tel Aviv por um prato de lentilhas.

Os acontecimentos do último mês assinalaram o primeiro renascer autêntico do mundo árabe desde a derrota de 1967. Todos os cataventos sempre alertam para não se ficar nunca no lado equivocado da história e evitar sempre toda experiência de derrota, mas foram surpreendidos por estes levantes. Esqueceram que as revoltas e as revoluções, formadas por circunstâncias reais, ocorrem quando as massas, as multidões, a cidadania – não importa como as chamamos – decidem que a vida tornou-se tão insuportável que não será mais suportada. Para esta gente, uma infância pobre e a injustiça resultam tão naturais quanto um pontapé na cabeça recebido na rua ou um interrogatório brutal na cadeia. Já experimentaram tudo isso, mas quando as mesmas condições ainda estão presentes e agora já são adultos, então o medo da morte retrocede. Quando se atinge essa etapa, uma só faísca pode acender um fogo na savana. Neste caso, literalmente, como demonstra a tragédia do jovem que se imolou na Tunísia.

Estamos no princípio da mudança. As massas árabes não foram sufocadas pela força desta vez e não sucumbiram. O que oferecerão ao seu povo os que substituirão os déspotas na Tunísia e no Egito? A democracia, por si só, não pode alimentá-los ou dar-lhes emprego...

Tradução: Katarina Peixoto
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Massacre da Praça Tiananmen, em Pequim

O Protesto na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), mais conhecido como Massacre da Praça da Paz Celestial, ou ainda Massacre de 4 de Junho

Em 4 de Junho de 1989, soldados do Exército de Libertação Popular dispararam indiscriminadamente sobre mais de cem mil manifestantes que exigiam seus direitos de cidadãos. O protesto consistiu em uma série de manifestações lideradas por estudantes na República Popular da China, que ocorreram entre os dias 15 de abril e 4 de junho de 1989. Os manifestantes eram oriundos de diferentes grupos, desde intelectuais que acreditavam que o governo do Partido Comunista era demasiado repressivo e corrupto, a trabalhadores da cidade, que acreditavam que as reformas econômicas na China haviam sido lentas e que a inflação e o desemprego estavam dificultando suas vidas.

8 comentários:

  1. Essa percepção de quando um povo decide que a vida tornou-se tão insuportável que não será mais suportada, deve ser o princípio básico de todos que se sentem subjugados e que é preciso lutar incansávelmente para torná-la suportável, pelo preço que for.
    Viva o povo destituído de déspotas!

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  2. Substituir um torturador por outro não é jamais aceitável. Toda luta desse povo para se libertar de seus verdugos não pode ser em vão.

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  3. A revolta do povo árabe contra o estado despótico que o sucumbia merece um final digno, sem essa de trocar 6 por meia dúzia.
    Eder Freitas

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  4. Excelente. Principalmente por saber que os militares não vão disparar contra o povo.

    As 2 fotos, tão distintas, que voces usaram para ilustrar o assunto refletem muito bem o que Tariq Ali quis dizer em seu artigo. Parabéns a todos.

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  5. Perfeita a explanação onde ele diz que para esta gente, uma infância pobre e a injustiça resultam tão naturais quanto um pontapé na cabeça recebido na rua ou um interrogatório brutal na cadeia. Já experimentaram tudo isso, mas quando as mesmas condições ainda estão presentes e agora já são adultos, então o medo da morte retrocede. Quando se atinge essa etapa, uma só faísca pode acender um fogo na savana.

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  6. Gosto de artigos assim que não são meramente opinativos mas que demonstram fatos da história e suas correlações. Que fazem a gente pensar.

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  7. Será que finalmente o planeta Terra se despojará de ridículos tiranos ?
    Será que vou viver para ver isso !!!
    Salamaleico !!!

    @r@pong@

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  8. Fazia um bom tempo que eu não vinha aqui.
    Vcs tão bombando, parabéns.
    Gostei do texto. Lúcido.
    E essa foto do rapaz chines enfrentando os tanques me fez lembrar como a gente se esquece das coisas. E isso é muito mal...
    Bjões a tds

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