quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A terceira morte de Vladimir Herzog

Desde sábado, 19, um assunto anda inquietando muita gente que acredita finalmente viver num país liberto do medo de contar a sua, a nossa, história.

Revelar o passado, o direito à memória e à verdade, é inerente e respeitoso ao sentimento de liberdade.


O jornalista Audálio Dantas procurou o Arquivo Nacional, em Brasília, para finalizar o livro que está escrevendo sobre Vladimir Herzog, o Vlado, torturado e morto nos porões do DOI-Codi durante a ditadura militar, e teve impedido o seu acesso.

Vladimir Herzog, já sofrera duas mortes anteriores: o assassinato propriamente dito por agentes do Estado quando estava preso e o IPM (Inquérito Policial Militar) que o responsabilizou por sua própria morte, acusando-o de suicida por enforcamento.

Concordando com Ricardo Kotscho, colunista do iG, que publicou o artigo que deu dimensão a essa inquietação, pode-se dizer, portanto, que estão matando Vladimir Herzog pela terceira vez, impedindo Audálio Dantas o acesso à sua história.
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Sem conseguir ser atendido, Audálio Dantas resolveu encaminhar este e-mail ao Ministério da Justiça:

“Prezado Senhor Flávio Caetano

Provavelmente o senhor não me conhece, por isso apresento-me: sou Audálio Dantas, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e da Federação Nacional dos Jornalistas, ex-deputado federal. Tentei vários contatos telefônicos com o senhor, sem resultado. Por isso envio-lhe esta mensagem.

Estou concluindo (com prazo para entregar à Editora Record) livro sobre o Caso Herzog, do qual fui parte. Necessitando de informações sobre o assunto, procurei, no último dia 10, o Arquivo Nacional - Coordenação Regional de Brasília, que mantém a guarda dos papéis do Serviço Nacional de Informações. Depois de me identificar, preenchi fichas de solicitação, tomando o cuidado de acrescentar informações adicionais sobre o caso, hoje referência histórica.

Como dispunha apenas de uma cópia de procuração que foi dada pela viúva de Herzog, Clarice, datada de agosto de 2010, disseram-me que era necessário documento original, com data mais recente. Já estava para buscar outra procuração quando recebi (dia 14/02) ofício em que se exige, além da procuração:

- Certidão de óbito de Vladimir Herzog
- Certidão de casamento

Considero que, em se tratando de caso histórico, de amplo conhecimento, e quando se sabe que a União foi responsabilizada na Justiça pelo assassinato de Herzog, tais exigências são absurdas e até desrespeitosas. Que atestado de óbito terá a viúva para mostrar? O que foi lavrado com base no laudo do médico Harry Shibata, que servia ao DOI-Codi e confessou tê-lo assinado sem ver o corpo? E que certidão de casamento terá Clarice Herzog juntado à ação que impetrou contra a União pela morte do marido?

E se a pesquisa fosse sobre o ex-deputado Rubens Paiva, quem forneceria o atestado de óbito? Desse jeito, ninguém conseguirá saber sobre ele no Arquivo Nacional.

Gostaria de discutir mais a questão que envolve, parece, deliberada dificultação de pesquisa. Ou, no mínimo, desconhecimento histórico por parte desse órgão público.

Faço questão que essas informações cheguem ao conhecimento do ministro José Eduardo Cardozo, que deve conhecer minha história.

No aguardo de uma resposta,
Atenciosamente,

Audálio Dantas”.
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Arquivo Nacional revê restrição a dados sobre morte de Herzog

Após artigo publicado pelo colunista do iG Ricardo Kotscho (A terceira morte de Vlado Herzog), o escritor Audálio Dantas finalmente poderá pesquisar os documentos em posse do governo federal sobre a tortura seguida de morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975. O diretor-geral do Arquivo Nacional, Jaime Antunes, afirmou não ser necessária a apresentação de atestado de óbito, requisito que havia sido imposto a Dantas quando ele tentou obter acesso aos dados na coordenação regional do órgão em Brasília.

Apesar da solução do caso, Dantas afirmou ter ficado indignado e viu como provocação o fato de a coordenação do arquivo nacional em Brasília ter solicitado um atestado de óbito de Herzog.

“Estava anunciado há tempos que os documentos do SNI (Serviço Nacional de Informação) estavam abertos para consulta no arquivo Nacional. Fui lá como qualquer cidadão. Preenchi os requisitos e disseram que iriam fazer uma consulta ao departamento jurídico.

Daí de repente eu recebo um ofício - que é um primor de coisa burocrática - dizendo que, além da procuração, eu precisava da certidão do senhor Vladimir Herzog. Isso na hora me deu uma grande indignação porque todo mundo sabe as circunstâncias que esse fato (o assassinato) ocorreu. Achei até uma provocação”.

9 comentários:

  1. Esse assunto é muito perigoso.
    Resolveu, mas sempre permanece assombrando o fantasma das coisas que não são tão claras como parecem.

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  2. Perigoso mesmo.
    Certamente o que deteve o jornalista ao acesso às informações foi burocracia + incompetência de funcionário que não conhece a história de seu país.
    Mas isso não torna o assunto sem importância.
    O jornalista conseguiu chegar ao que queria porque tem meios para isso. É um alguém representativo, é um alguém da mídia.
    E o cidadão comum, conseguiria?
    Aí que conta a quantas vamos nesse tal Direito à Verdade.

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  3. Concordo com vocês.

    Se os documentos do SNI estão disponíveis para consulta de todo e qualquer cidadão para que a burocracia?

    Agora, francamente, Herzog é personagem da nossa história, reconhecido pela justiça que foi assassinado pelo regime militar, qualquer exigência burocrática para disponibilizar informações sobre ele é completamente desprovida de bom-senso.

    Qualquer pessoa se sentiria ofendida se passasse por isso. Eu ficaria. Acharia que estão tirando sarro da minha cara.

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  4. Muito bem colocado pelo Audálio a questão "e se a pesquisa fosse sobre o ex-deputado Rubens Paiva, quem forneceria o atestado de óbito?"
    Seus assassinos?
    O corpo de Rubens Paiva jamais foi localizado para nele ser feito autópsia e atestar seu óbito.
    Se essa exigência existe no Arquivo Nacional para o acesso à informações é porque a coisa não está tão clara assim como querem mostrar. Aí tem coisa.

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  5. O caminho rumo ao direito à verdade parece que continua com muitas pedras...
    JP

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  6. É verdade. Não adianta o governo divulgar a todo instante que haverá mudanças por aqui no que diz respeito a deixar claro o nosso passado se na prática os obstáculos permeiam o obscuro.

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  7. É isso aí minha gente. Olhos bem abertos e atitudes pra essa de direito à verdade não ser mais uma conversa mole pra tapear a gente e quando percebermos passou tempo e tempos sem verdades e direitos.

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  8. Estou de acordo com os que disseram que a burocracia é a vilã de certos impedimentos, mas quem orquestra a burocracia? E porque a fazem assim tão complexa para atrapalhar e retardar certos procedimentos?
    Claro que aí tem coisa.

    MAX DANIEL

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  9. Talvez um coração de ferro agüente, o meu fizeram-no de carne e sangra todo dia. (Saramago)

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