por Paulo Milhomens
Um pouco antes... para entender...
Em 30 de março de 1964, tropas do exército se movimentavam em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (incluindo o extinto Estado da Guanabara). O poder das elites, juntamente com as forças armadas, colocava a herança do Estado Nacional fora da área “subversiva” dos comunistas. O então presidente em exercício, João Goulart, ex-ministro do antagônico gaúcho Getúlio Vargas, foi obrigado a exilar-se de última hora no Uruguai. Não fora avisado que seu mandato havia sido cassado. No Distrito Federal, deputados e senadores golpistas tratavam de encerrar a última sessão no plenário. “Vocês vão ver, isso não vai ficar assim!”. Apenas uma voz discordante na mórbida Brasília daquele dia. No dia 1° de abril, as forças armadas (Exército, Aeronáutica e Marinha) brasileiras anunciavam “oficialmente” que uma junta de militares assumiria o poder da república para “estabelecer a ordem e salvar a nação”. Tornou-se praticamente impossível ouvir outra notícia nos principais jornais do país, como “Folha de São Paulo” e o “Estadão” (Estado de São Paulo). A grande imprensa da época estava apoiando diretamente a “nova ordem democrática e revolucionária”. Na verdade, uma era de terror se instalava.
O Brasil acabava de mergulhar numa ditadura (1964-1985), comprovadamente um golpe civil-militar, sobretudo apoiado pelas elites ligadas aos centros industriais. Não devemos esquecer que neste momento, o país estava sobrepujado pelas amarras do Velho Brasil rural, que emergia para uma nação urbana através da abertura econômica das regiões norte e nordeste, até então desconhecidas pelo sul e sudeste. A antiga capital federal (Rio de Janeiro) foi transferida para o planalto central, no estado de Goiás, região inóspita, pouco habitada, agora o símbolo da expansão nacional. Assim, surgia Brasília, idealizada anos antes pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-60). O país estava dividido, desde a Era Getúlio Vargas (1930-1954) – incluindo aí o Estado Novo despótico (1937-1945/46) – nos interesses hegemônicos do pós-guerra, ora como poder bipolar entre URSS e Estados Unidos. Assim como Juscelino, João Goulart, presidente em exercício, era alinhado ao modelo estatal e patrimonialista de Vargas. Com o aumento das intervenções estadunidenses na América Latina, a partir do término da 2ª Guerra e a reconstrução da Europa, uma série de medidas foram adotadas pelo governo norte-americano para controlar a região. Configura-se um novo panorama: a substituição das democracias nacionais por regimes militares. O plano perfeito.
Porquê o Brasil?
Desde o final da Era Vargas, o Brasil estava alinhado ao contínuo reformismo social das classes trabalhadoras e o fortalecimento das instituições públicas. É dessa época a criação da Petrobrás (a maior empresa pública de petróleo da América do Sul), da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) – paradoxalmente inspirada no governo fascista italiano mussolinista – e de um sistema previdenciário social capaz de contribuir com a modernização do Brasil. Embora as oligarquias agrárias não admitissem o declínio frente a um modelo progressista, as condições de vida (seja no campo ou nas cidades) era bastante arraigada a valores provincianos, oriundos do Brasil Imperial. Houve um continuísmo deste modelo com a chamada República Velha (1889-1930), mas a partir da década de 50, o país projetava-se às reformas de base, de cunho social, favorecendo a estatização de empreendimentos estrangeiros e voltando suas atenções para melhorias de condições da vida campesina. Nos primeiros três anos de mandato (1961-64), Goulart chegou a defender abertamente a Reforma Agrária, assunto que, ainda hoje, nossas elites preferem evitar. Goulart, seguramente, era um dos últimos remanescentes da república varguista. Era de longe um esquerdista, mas de práxi, tornou-se um progressista frente aos movimentos de esquerda do período. Outros exemplos semelhantes também emergiam na América Latina – sobretudo na Argentina, Chile e Paraguai – representando modelos econômicos diferenciados do “American Way of Life”, doutrina ideológica propagada, principalmente, com a indústria cinematográfica de Hollywood. A América do Norte, em sua porção estadunidense, desvinculava-se “politicamente” do Cone Sul. O exemplo da Revolução Cubana (1959) alarmou o “avanço comunista” para o Pentágono, agora bastante presente nas discussões da OEA (Organização dos Estados Americanos) e da OMC (Organização Mundial do Comércio). No Brasil, havia outros fatores somáticos: divergências de acordos econômicos, sobretudo, no mandatos de Jânio Quadros (1961) em relação a investimentos de grandes empresas estadunidenses no país.
Em 1° de abril de 64, um avião monomotor levava, além do presidente cassado e outros assessores, um notório político, pensador e antropólogo: Darcy Ribeiro. Também estava no avião. A ordem dos tripulantes: não pousar a qualquer custo. Pelo rádio da aeronave, ouve-se uma mensagem de advertência. Goulart e demais aliados partem para Montevidéu, saindo do Rio Grande do Sul. “Jango” (como era conhecido) era oriundo de uma família tradicional gaúcha, de certa forma, apoiada nos ideais varguistas da chamada Revolução de 1930. A essa altura, a Junta Militar preparava um general-presidente para assumir o controle da situação. Por outra via, para compreendermos os ‘anos pós-golpe’, é necessário estudarmos, também, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e sua popularização a partir de 1945, quando muitos de seus membros presos pelo Estado Novo (1937-1945/46) refundam a agremiação política que estava na clandestinidade. A influência européia foi decisiva, particularmente depois que o nazi-fascismo alastrava-se pelo continente. Partidos de direita, conservadores, aparecem: Arena e UDN (União Democrática Nacional), filiados aos interesses da pequena e média burguesia, sobretudo no sudeste. O PCB seguiu uma orientação política, em seus primórdios, marxista-leninista-stalinista. Mas em síntese, defendia um “capitalismo nacionalista”, apoiado em leis trabalhistas, reforma agrária e empresas estatais. Estaria Goulart levando todo esse encargo – e seu fracasso – histórico a bordo daquele avião? Um Brasil estagnado, abortado em promessas de uma era democrática foi insuflada? Ora, estávamos na Era Vargas apoiando o nazismo, depois ao modelo estatizante da União Soviética? Antagonia das estruturas? Que país é este? Permitimos um golpe de estado.
Sim, antes, em 1956 chega a presidência Juscelino Kubitschek. Para dar um ar menos ‘populista’ – herança típica de Vargas – e mais ‘popular’, lançou “Jango” como vice. Este governo, além da construção de Brasília e a transferência da capital federal para o planalto central, caracterizou-se pelo lema “50 anos em 5”. Modernizar o país a todo custo, apoiado num criterioso plano de metas nacional, acordos com militares e grandes empresários. De certa forma, as empreitadas de JK também ajudaram a endividar o país em milhões no exterior...
Em 1960 é substituído por Jânio Quadros, ex-prefeito e governador de São Paulo, apoiado pela conservadora UDN. Por sua própria contrariedade política (simpatizando com a esquerda e a direita) chegou a condecorar o guerrilheiro/comandante Ernesto Guevara em visita ao Brasil, com a ‘Ordem do Cruzeiro do Sul’. Isso enfureceu tanto Washington como seus correligionários udenistas. Seu mandato foi exíguo: renunciou sete meses depois. Jango, enquanto vice assume após uma série de contravenções partidárias entre os antigos apoiadores de Quadros, como Leonel Brizola, importante figura do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e queda-de-braço da UDN. A esta altura o PCB dividia-se na crítica ao stalinismo e a ruptura China x URSS. Em 1962 surgia o PC do B – de orientação maoísta com João Amazonas e Maurício Grabois, ao passo que o “partidão” (PCB) tinha Luís Carlos Prestes como líder principal. O país atravessava intensas manifestações no campo e nas cidades. Grupos esquerdistas, associações, sindicatos exigiam reformas de base, havia um clima nacional, orientando para a conscientização das massas.
Não seria conveniente desde a abertura política (1985), com a eleição de Tancredo Neves, refletirmos sobre a palavra “república”? Entregamos a nação? Como a CIA havia colaborado diretamente na instalação do golpe, um porta-aviões estava às margens das Antilhas, prontos para entrar em ação caso focos de insurreição civil fossem notificadas. Por outro lado, perguntemos o porquê dos militares darem o golpe. É claro que recrutas de baixa patente acreditavam estar “salvando a pátria”. Militares de alta hierarquia, na contramão, defendiam seus interesses. Generais, oficiais ou tenentes, advinham da classe média, e geralmente eram educados em escolas militares. É claro, num panorama internacional seria difícil fugir à regra dos blocos bipolares da corrida armamentista. A própria fundação da ESG (Escola Superior de Guerra), em 1949, consistiu no preparo de oficiais brasileiros por militares norte-americanos. Esse “convênio” intensificou-se quando a Junta Militar nomeu o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco como primeiro “general-presidente”, em 64. Então, como as forças anti-golpistas não foram capazes de reagir a tempo? Se permitimos o Ato Institucional número 05 (AI-05) em 1968, intensificando a tortura e a repressão, deixando que nossos/as artistas, intelectuais, educadores fossem expulsos/as de seu próprio país, como reparar tantas mortes? Se deixamos o movimento da luta armada fracassar no Araguaia (norte do Brasil), e noutras regiões, como pudemos imaginar (e nos fizeram acreditar) que se tratavam de ações “terroristas”? Hoje, na história recente do país, nomes como Carlos Lamarca, Mariguela e “Osvaldão” aparecem como criminosos. No entanto, essas pessoas representavam focos de resistência num país sem liberdades, censurando músicas em rádios, peças de teatro, livros e outras formas de expressão democráticas.
O Brasil, infelizmente, deve “comemorar” 47 anos do dia fatídico. E não foi um feriado “do dia da mentira”, mas um período trágico para nossa história. As novas gerações precisam entender, os mais velhos não esquecer, pois os contrastes e problemas do país estão profundamente arraigados no autoritarismo e nos atos de terrorismo de estado provocados pela Ditadura Militar. É curioso e triste saber que muitos políticos aliados ao regime no passado, estavam na Constituinte de 1988. Claro, essa transição democrática não foi (ainda não é) satisfatória para uma verdadeira democracia. O fardo ainda é pesado. É constrangedor imaginar como a justiça brasileira é lenta em relação aos crimes do regime. Em países como Chile, Argentina e Uruguai, os arquivos podres de suas ditaduras avançam na punição dos culpados, ao passo que por aqui, a burocracia dos processos-crime é lenta, confusa como a memória brasileira. Portanto, considero que estamos numa ‘Democratura’. Misto antagônico entre passado e futuro mal resolvidos.
Não esqueçamos, nunca... Enquanto termino esse texto, quatro garotas tomam cerveja numa sala ao lado. Assim que terminar de redigir, vou falar sobre isso... Esquecer nunca!
Fonte: http://www.revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=413&Itemid=47
Elucidativo.
ResponderExcluirEstamos à véspera de um aniversário em que não apago nenhuma das 47 velinhas. Quero todas acesas para sempre. Pra nunca esquecer desse dia nojento que deixou o Brasil numa total escuridão.