sexta-feira, 29 de julho de 2011

O julgamento de Ustra: a memória contra o extermínio

por Passa Palavra

O esquecimento do passado une-se à política do “medo” e da “segurança” para dar continuidade à violência institucional e à “engenharia do extermínio dos pobres”.

Na tarde de 27 de julho, deu-se início ao julgamento do processo civil que a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino move contra o coronel reformado do Exército Brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foi a vez de 6 testemunhas de acusação prestarem seus depoimentos no Fórum (Palácio de Justiça) João Mendes, na capital de São Paulo.

Todas as declarações das testemunhas convocadas confirmaram a tese de que Ustra era a autoridade que ordenava os interrogatórios e o início das torturas que aconteciam nos porões (caves) do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão da ditadura civil-militar de que foi comandante entre outubro de 1969 e dezembro de 1973. Paulo Vannuchi e Leane Ferreira de Almeida, dois dos depoentes, disseram que Ustra participava pessoalmente das sessões de tortura que conduzia.


Merlino era militante do POC (Partido Operário Comunista) e tinha 23 anos quando foi preso sem ordem judicial, em 15 de julho de 1971, na casa de sua mãe, na cidade de Santos. No dia 19 do mesmo mês, a família receberia a notícia de que ele havia se suicidado, atirando-se embaixo de um carro na BR-116. Na verdade, Merlino passou horas sendo torturado no pau-de-arara, até que complicações por conta da gangrena que tivera na perna o levassem a morte. A agonia do jornalista em seus últimos momentos foi presenciada por algumas das testemunhas. Segundo elas, o militante chegou a ser levado ao Hospital do Exército, mas, ao saberem que teriam de amputar-lhe a perna, os torturadores preferiram deixá-lo morrer. Laurindo Junqueira Filho, outra testemunha, disse à juíza que um caminhão atropelou o corpo de Merlino, por diversas vezes, até esquartejá-lo, para dar maior veracidade à versão de suicídio.

O coronel não compareceu ao Tribunal, e as duas advogadas que o representavam não se manifestaram em nenhum momento. Em etapas posteriores, novas testemunhas devem ser ouvidas, mas, a princípio, não há previsão para que o caso seja encerrado.

Um “fio de memória”

Enquanto ocorria a sessão, cerca de 300 pessoas ligadas a movimentos sociais, entidades de direitos humanos e solidárias à família manifestavam-se em frente ao Fórum João Mendes; fato que deixou Ângela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino, bastante surpresa e entusiasmada. A família deu entrada na primeira ação declaratória em 2008, porém, através de um recurso, acatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a defesa do coronel conseguiu que o processo fosse arquivado. Hoje, para Ângela, o próprio fato de esta nova ação estar tramitando representa “um avanço no processo em que estamos vivendo, num momento em que se vive um retrocesso na Comissão da Verdade e Justiça”.

A ação civil declaratória movida contra Ustra não implica pena criminal nem envolve indenização pecuniária. Trata-se de um reconhecimento moral de que existiu de fato um terrorismo de Estado no Brasil, algo que acarreta consequências práticas para os dias de hoje. No entendimento da família do jornalista assassinado e seus apoiadores reunidos no Coletivo Merlino, o silêncio e o esquecimento do passado unem-se à inovada política do “medo” e da “segurança” para dar continuidade à violência institucional e, sobretudo, à “engenharia do extermínio dos pobres”. Para Nicolau Bruno, membro do coletivo, é importante que os grupos contra a tortura e os movimentos sociais “criem uma unidade, criem um fio de memória que ligue as lutas contra a ditadura às lutas contra a violência nas periferias”. Afinal, como fez questão de frisar na fala que encerrou a manifestação, “a luta contra a ditadura era, antes do mais, uma luta anticapitalista”.

publicado originalmente em passapalavra

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6 comentários:

  1. Se todos os familiares dos desaparecidos políticos do tempo da ditadura fizessem o mesmo que a família de Merlino está fazendo a verdade viria a tona rapidamente e seria bem mais difícil esses assassinos se manterem impunes.

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  2. Provavel que esse julgamento se alastre infinitamente. São poucos querendo a verdade e muitos a favor desse estado de hipocrisia. Exemplo disso foi o Boris Casoy que ao falar do julgamento no jornal dele vociferou uma esfuziante defesa a favor da ditadura.

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  3. O Brilhante Ustra durante a ditadura era o corajoso torturador implacável e macho que só, Agora é o Apagado Ustra que nem tem coragem de comparecer no próprio julgamento.
    Carlos Nascimento

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  4. frUSTRAnte se esse julgamento ficar nesse lengalenga.

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  5. Os crimes de tortura e desaparecimento de pessoas cometidos no e pelo regime militar brasileiro, por Ustra, Fleury e tantos outros, ficaram impregnados no nosso país como conduta até os tempos de hoje ainda exercida. Quantas pessoas abordadas pela polícia, grupos de extermínio, desaparecem misteriosamente? Quantos corpos são encontrados perfurados a bala? Quantos desses crimes foram a julgamento? São marcas de um país onde justiça não significa virtude nem conformidade com o direito, não é razão fundada nas leis. Não é um estado de graça e muito menos retidão da alma que a graça vivifica.

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  6. Será que Sarney, na inesperada condição de testemunha de defesa, louvou e enalteceu o maior ícone vivo da repressão mais feroz da mais longa ditadura da história brasileira – o Ustra.

    O homem que montou e comandou, na fase mais sangrenta do governo Médici (1970-1974), o centro de tortura mais notório do regime, o DOI-CODI do II Exército, na rua Tutóia, a cinco quadras do ginásio do Ibirapuera, no coração de São Paulo.

    Será que Sarney tentou livrar Ustra de uma nova condenação como torturador (a primeira foi em 2008), agora acusado pelo assassinato em 1971 do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que sucumbiu após quatro dias de tortura brutal no DOI-CODI paulista, sinônimo de morte e terror. Poucos saíam vivos dali. Quem sobrevivia carregava na carne e na memória as marcas do suplício.

    Sarney sempre soube disso, na comprometedora condição de um dos caciques nacionais da Arena, o partido inventado pelos militares para apoiar politicamente a ditadura sustentada pelo terror metódico das masmorras de Ustra e seus comparsas.

    Será?

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